42,72% das pessoas LGBTI+ relatam problemas de saúde mental na pandemia

Na primeira reportagem da série que evidencia a vulnerabilidade deste segmento social na crise sanitária, destacamos que os transtornos psicológicos manifestam-se como consequência de uma sociedade que cria empecilhos ao direito à livre orientação sexual e identidade de gênero

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Ilustração: Adaptado do Freepik
Por Rafael Mesquita, Rogério Maia e Samya Nara

Além de todos os estigmas impostos por esta sociedade profundamente LGBTfófica, as pessoas LGBTI+, que sempre conviveram com o medo, veem suas vidas ainda mais dificultadas na pandemia de Covid-19.

De acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (ANTRA), desde que o isolamento social começou a ser adotado, a violência contra a população trans e travesti subiu absurdamente. Entre os meses de janeiro a abril, foram 64 assassinatos, uma alta de 49% em relação ao mesmo período do ano passado.

Sentido-se mais vulneráveis, LGBTIs destacaram, em pesquisa realizada pelo coletivo #VoteLGBT, com o apoio do escritório de inovação Box 1824, que tiveram piora na saúde mental.

O estudo constatou que, entre as mais de dez mil LGBTI+ brasileiras entrevistadas, 42,72% relataram agravamento de problemas de saúde mental (ansiedade, depressão e crises de pânico) como o maior impacto da pandemia em suas vidas.

Além disso, 54% das pessoas afirmaram precisar de apoio psicológico.

A fragilidade emocional, inclusive, aparece com mais força em alguns grupos específicos. Vejamos:

  • Identidade de gênero – agravamento psicológico é maior em identidades femininas e não binárias (46%), em detrimento de identidades masculinas (34%).
  • Orientação sexual – lésbicas, bissexuais e pansexuais também apontam mais este problema (45%) do que gays (34%).
  • Perfil étnico-racial – 41% de brancos e asiáticos indicam a questão da saúde mental como a maior dificuldade, contra 34% de pretos, pardos e indígenas.

Juventude é mais exposta

Foto: Ian Espinosa / Unsplash

A pesquisa do “#VoteLGBT” destaca como dado mais preocupante o fato de um em cada dois LGBTI+ de 15 a 24 anos indicarem a saúde mental como o maior problema do isolamento.

Entre os mais velhos, a indicação foi de 21%, para pessoas de 45 a 54 anos, e de 12%, para os que têm 55 anos ou mais.

Isso poderia “estar diretamente relacionado à dependência financeira e necessidade de isolamento em um ambiente familiar que muitas vezes não compreende ou aceita ume jovem LGBTI+, podendo até ser violento”, assinala a publicação do estudo.

Diagnósticos de depressão é maior na população LGBTI+

Outra informação relevante apresentada pelo levantamento é que 28% das pessoas LGBTI+ relataram já terem diagnóstico de depressão antes da quarentena. O número é muito maior que a média da população geral, que indica que 5,8% dos brasileiros sofre de depressão e 9,3% de ansiedade, de acordo com dados da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (ABRATA).

O fato é que os transtornos psicológicos manifestam-se como consequência de uma sociedade que torna difícil o caminhar de afirmação da orientação sexual ou da identidade de gênero.

É o que relata o publicitário Matheus Vidal (25 anos), que durante o seu processo de aceitação como homem trans relata ter sofrido uma série de tensões emocionais, que o levaram a quase tirar a própria vida.

Matheus Vidal explica como vem superando as crises emocionais. Foto: Arquivo Pessoal

Hoje, ele tem ciência do tamanho desse desafio e ajuda outros jovens trans em suas transições. “Cuidar da saúde mental é muito importante pra mim. Infelizmente, essa descoberta eu só fiz depois de muito tempo, depois de me assumir trans. Só depois de me entender enquanto homem, de me aceitar e entender o meu lugar, comecei a ver a importância disso. Pra gente que é trans é mais difícil ainda. Antes da gente se assumir, parece que tem uma barreira que te impede de viver sua vida, que te impede de ter ambição, de querer conquistar, ir atrás dos seus sonhos e realizações, afinal tudo aquilo que você vive parece uma mentira, até porque não é a sua vida de verdade, apenas uma vida que é imposta desde antes de você nascer”, relata o publicitário.

Matheus buscou ajuda profissional, o que é recomendado. “É difícil falar, é difícil procurar e encontrar ajuda. Não dá para aguentar tudo sozinho, ainda mais em um cenário em que 90% de nós (pessoa trans) estão na prostituição, vivem até 35 anos, e que 82% de nós não conseguem concluir a escola pelo preconceito”, destaca o jovem.

Hoje, ele diz se sentir pleno. Atualmente, nas redes sociais, Matheus busca falar sobre a sua identidade para ajudar outras pessoas trans, trazendo dados e informações que colaboram para diminuir dúvidas, além de propor reflexões e gerar aproximações e inspirações.

O publicitário reitera que “não podemos continuar deixando que a sociedade continue invalidando a nossa existência e nos submetendo à condições sub-humanas. Não cuidar da nossa saúde mental só faz com que a situação piore pra gente”, finaliza.

Ficar em casa pode significar enfrentar a rejeição de frente

Foto: Joshua Rawson-Harris / Unsplash

Segundo o psicólogo clínico com experiência em atendimentos à população LGBTI+, Dante Machado, o isolamento social para essas pessoas pode ser ainda mais prejudicial. Isso porque, na maioria das vezes, elas precisam permanecer em isolamento com familiares que acabam sendo companhias “ansiogênicas” (que geram ansiedade).

“Em muitos casos, os familiares não compreendem e não aceitam suas sexualidades e identidades de gênero. A pessoa que já não se sentia aceita e acolhida dentro de casa, muitas vezes cria uma rotina mais na rua, seja na casa de amigos, escola, universidade ou outros espaços em que se sentia mais acolhida e compreendida”, explica o profissional.

Mídias sociais podem ser um refúgio

Apesar de muito se falar que as redes sociais estejam neste momento sendo plataforma de ódio, por conta da presença massiva de grupos fascistas e antidemocráticos, elas também podem ser espaço de resistência e de apoio para pessoas LGBTI+.

Postagens positivas e inspiradoras em perfis nestes espaços produzem a necessária acolhida, que muitas vezes pessoas de orientação sexual ou identidade gênero diversas não encontram em casa.

Thaffa Silva encontrou apoio em novos amigos feitos na internet. Foto: Arquivo Pessoal

O acolhimento nas mídias sociais é destacado por Thaffa Silva (31 anos). Escritor, produtor e homossexual, ele se considera bem resolvido, mas se viu deprimido em meio ao isolamento social provocado pela crise sanitária. “A pandemia, de certa forma, vem me deixando muito triste pelo fato de eu estar parado, sem sair de casa, ficar sem rever meus amigos, jogar conversa fora (…) Tudo isso vem me deixando meio que depressivo. Eu sempre fui uma pessoa centralizada, vamos dizer, forte. Mas esse atual momento me deixou adquirindo pensamentos meio que negativos”, conta.

A virada para ele veio no dia 23 de março quando, em uma conversa de mensagens instantâneas em um grupo, colocou que estava se sentindo mal com o atual contexto. “Oi, Thaffa. Vi sua mensagem no grupo. Saiba que estou aqui e tô aberto a conversar”, dizia uma mensagem que ele recebeu no privado.

A partir dai, houve uma virada. “Um rapaz veio falar comigo no privado, perguntando sobre o que eu gostava de fazer, se poderia me ajudar em alguma coisa. Eu disse que eu gostava de escrever novelas. Mas eu não estava escrevendo naquele momento. Então, ele me motivou a escrever. Eu já comecei criando o primeiro capítulo sem ao menos fazer uma sinopse. E fui desenvolvendo os capítulos, perfil de personagens”, conta.

Criar uma rotina, que passa pelo cenário virtual, o fez bem. Todos os dias, Thaffa tem um horário dedicado à escrita da novela, que vem o motivando a cada dia. “Me deu força para superar os desânimos e medos de não ir além”, comemora.

O psicólogo Dante Machado explica que mesmo com o aumento dos índices de ansiedade, depressão, riscos de suicídio e LGBTfobia neste período, há coisas que podem ser feitas para amenizar essas sensações de isolamento e sofrimento psíquico, como, por exemplo, estar sempre em contato com sua rede de apoio, sejam amigos, colegas do trabalho/faculdade ou familiares mais compreensivos, assim como Thaffa vem fazendo.

“Essa rede de apoio para a pessoa LGBTI+ é extremamente importante e tem um impacto muito positivo na saúde mental e integral do sujeito”, destaca o profissional.

Excesso de demandas também vem estressando as LGBTI+

Aos 38 anos de idade, Germana Aragão teve que se reinventar durante o isolamento social. Professora de Geografia, lésbica e presidente do Sindicatos dos Servidores Públicos Municipais de Santa Quitéria, no Ceará, onde mora, ela disse que as demandas do sindicato aumentaram. Com isso, mais trabalho e estresse em um nível nunca visto antes, deixou-a hiperativa, principalmente com a carga de problemas levada pelos servidores filiados ao sindicato que dirige.

Como sinais, ela percebeu-se mais estressada e com dificuldades para dormir. “Se eu que já tenho 38 anos e me sinto madura, tive dificuldades de gerenciar esse período, imagino como foi e está sendo para os meus alunos de 15 anos, por exemplo. É difícil”, relata.

Germana Aragão encontrou novas maneiras de lidar com a solidão. Foto: Arquivo Pessoal

Ela conta que um dos resgates para tentar se manter sã foi a aproximação do vínculo familiar, que foi fortalecido pelo trabalho home office e a leitura.

“O convívio com meu pai e irmão melhorou. Antes da pandemia, eu não tinha tanto tempo para vê-los. As vezes, quando chegava em casa, eles já estavam dormindo”, revela, embora reconhecendo que nem todo mundo tem uma relação positiva com a família.

Germana relata também algumas estratégias que ajudaram a não se sentir solitária. “Comecei a focar em coisas que eu não tinha tempo de fazer, tipo leitura. Antes, eu passava três meses para ler um livro. Hoje vejo séries, filmes, ouço músicas. Ah, e atividade física também me ajuda a manter o equilíbrio emocional, eu opto pelo ciclismo. Trabalhei meu psicológico com isso para minimizar esses impactos e, hoje, me sinto melhor”. ressalta.

O psicólogo Dante explica que existem também alguns grupos de apoio, profissionais e institutos que se disponibilizaram a atender, durante a quarentena, pessoas LGBTI+ por um preço simbólico ou de forma gratuita, compreendendo as demandas dessa população e o impacto do isolamento social na saúde mental desses sujeitos.

Parafraseando um personagem da série Rupaul’s Drag Race sobre família e pessoas LGBTI+, Dante finaliza dizendo que, como qualquer ser humano, “pessoas LGBTI+ tem a possibilidade de escolher sua própria família”.

“Então, é isso, escolham suas famílias e construam novos espaços de acolhimento, respeito e compreensão, pois o impacto na qualidade de vida do sujeito é enorme e tudo que essas pessoas precisam é de amor neste momento difícil”, enfatiza.

Como cuidar da sua saúde mental?

Algumas dicas de ações para passar pela pandemia sem grandes perdas:

  • Tentar se alimentar melhor;
  • Construir uma rotina com ações;
  • Meditação;
  • Consumir menos notícias trágicas;
  • Realizar a prática de exercícios físicos;
  • Ter contato com a natureza.

E, lembre-se: Isolamento não é sinônimo de solidão (assista e faça lives ou chamadas de vídeo, por exemplo)

Onde encontrar apoio?

Rede ConVida

Os acolhimentos são gratuitos na ConVida. Foto: Divulgação

Em Fortaleza, a Secretaria Regional I da Prefeitura e um grupo voluntário de psicólogos juntaram-se e deram início à Rede ConVida, que está atendendo, de forma gratuita, moradores de Fortaleza, do Ceará e de vários Estados do Nordeste Brasileiro.

Os acolhimentos são realizados por meio de ligações telefônicas – efetuadas de modo convencional ou via WhatsApp. A Rede, que iniciou com 16 profissionais, hoje disponibiliza 71 psicólogos, com acolhimentos proporcionados nos turnos manhã, tarde e noite.

Cada acolhida tem duração de 30 minutos. O acolhido deve ter idade superior a 18 anos. Todos os profissionais participantes são autorizados pelo Conselho Regional de Psicologia para realização de atendimento a distância.

A população pode encontrar a tabela de atendimento da rede em: https://is.gd/atendimentoconvida.

Carmens

A Comunidade de Ações para Redesenho dos Modos de Existência e Prevenção do Suicídio, que encontra-se no Instagram como @carmens_comunidade e realiza escutas terapêuticas e outros projetos abertos ao público.

Saiba mais sobre a #VoteLGBT+: www.votelgbt.org

Leia amanhã: Pandemia trouxe dificuldades de acesso às redes de apoio para pessoas LGBTI+ brasileiras

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