Do Village ao Benfica: precisamos falar sobre segurança pública

Em texto que traz um resgate da resistência LGBTI+ à repressão policial e do Estado, o nosso novo colunista Jon Olyveyra conclama a revisão do modelo de segurança pública adotado no Brasil e no mundo. "Um novo modelo de polícia, que desse fim ao controle e à morte dos nossos corpos", propõe. Acompanhe na coluna!

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Na esquerda, os bares do Benfica. Na direita, o Stonewall Inn, em Nova York
Por Jon Olyveyra, colunista Mídia Queer
O final dos anos 1960 marcou a exaustão de modelos totalitários de controle social e comportamento. O mundo vivia sob o impacto do fim da segunda grande guerra, em que todos os esforços eram para a ampliação da ideia de que todas as pessoas possuíam direitos, em especial o direito à vida, à expressão e à autodeterminação.
Tudo isso era pauta das mais diversas discussões. Como sempre, os jovens estavam no centro de todos os debates. A juventude estava exausta do belicismo dos primeiros 50 anos do século XX e procurava, de forma sedenta, uma maneira de construir um futuro diante daquele presente de caos e morte.
Assim, vieram os hippies, a swing London, a contracultura, a psicodelia, as drogas e o início da globalização – uma maior interação com o desconhecido oriente, que se em séculos anteriores teria servido apenas para a exploração. No século XX, portanto, uma onda de hibridismo veio para misturar tudo e transformar o que estava vindo.
Nesse contexto, nos EUA daquele período, um pequeno bar, localizado no insurgente bairro Village, berço da geração beatnik em Nova York, vendia bebida adulterada e recebia todo o tipo de dissidência comportamental da época: travestis negras, lésbicas, mulheres trans e bixas. Contrariando inclusive a lei vigente que determinava que uma pessoa não poderia estar vestida em desacordo com o seu gênero biológico, o Stonewall Inn era um lugar possível de sociabilidade para sujeites LGBTI+ excluídes e invisibilizades. Um minúsculo refúgio diante de toda aquela violência.
Em 1969, como sabido, é forjado o movimento LGBTI+ na resistência à truculência policial. Polícia esta que além de ser agraciada com a propina que era paga pelos donos do Stonewall Inn, frequentava o Village realizando prisões, torturas e outras arbitrariedades contra quem fosse ao lugar.
Tudo isso é muito próximo ao Brasil de 2019, ano em que a população LGBTI+ celebrava os 50 da Revolta de Stonewall. Neste período, em Fortaleza, LGBTIs também viveram dias de luta contra a violência policial, que se manifestava em todos os cantos da cidade, fechando bares, abordando pessoas de forma truculenta e, em alguns casos, tal como a polícia americana dos anos 60, invocando Deus para justificar suas ações.
A Rua Instituto Ceará, no insurgente bairro do Benfica, foi o palco do mais repercutido e conhecido caso de violência policial contra jovens LGBTI+, mas há pelo menos dois anos os casos eram conhecidos em vários bairros.
Saraus, rolezinhos, festas, encontros de pessoas LGBTI+ foram atacados e desmobilizados, enquanto as famílias passeavam tranquilamente nos pólos de lazer e praças da cidade. 50 anos depois, nosso levante ainda é contra a violência e pelo direito social à vida, à expressão e a autodeterminação.

A nossa contínua Marcha do Orgulho

Em 1970, um anos após à luta realizada no Village, aconteceu a primeira marcha do orgulho, que pedia liberdade e direito para pessoas LGBTI+. Numa passeata pelas ruas do bairro novaiorquino, todas as dissidências sociais pediam sobretudo que resguardassem seu direito à rua.
Em 2020, não fosse pela pandemia do novo Coronavírus e o governo de caos e morte do Messias brasileiro, estaríamos em marcha contra a violência policial, pelo direito à rua e à cidade, encontrando companheires Negras e Negros e somando nossa dor as deles, como 50 anos antes.
Estaríamos juntes pensando um novo modelo de polícia, que desse fim ao controle e à morte dos nossos corpos e corpas pelas mãos do Estado e da Lei. Seria a dissolução deste e a criação de um novo modelo policial, um assunto urgente para o movimento LGBTI+ do século XXI.
Precisamos incorporar ao nosso discurso que, sendo forjades na resistência contra um modelo assassino de Estado, somos também a vanguarda da solução, somos a própria solução.
Assim, desmilitarizar a polícia não é apenas uma saída econômica, é a repactuação de uma série de ordenamentos sociais que se transformaram num entulho insuportável do século XX. Não aguentamos mais chorar o tombar des nosses!
Em 2019, todos os finais de semana, em Fortaleza, realizávamos novos levantes de Stonewall. Em 2020, chegamos à marca de 51 anos em marcha constante pelo fim da violência e pela destituição desse modelo de segurança pública.

Jon Olyveyra: Cantor, Músico, produtor e ativista em Direitos Humanos e pela cidadania plena de pessoas LGBTI+, integrante do coletivo Flor no Asfalto da comunidade do Lagamar e do CENAPOP, instituição realizadora do For Rainbow (Festival de cinema e cultura da diversidade sexual e de gênero), atuando desde 2009 na educação popular para os direitos humanos e respeito à população LGBTI+. É também conselheiro municipal do CMPDLGBT (Conselho Municipal de Promoção dos Direitos da População LGBTI+). Há dez anos compõe e apresenta shows, a partir do repertório popular de canções que dialoguem com a vivência desta população.

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