Pandemia reforça violências, exclusão e solidão da população LGBTI+

Problemas ligados à esfera social e familiar são apontados como o segundo maior impacto da crise de Covid-19 entre as pessoas de orientação sexual e identidades de gênero não normativas

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Ilustração: Adaptado do Freepik
Por Rafael Mesquita

Imagina que você é uma pessoa acostumada a estar todos os dias fora de casa, que basicamente só voltava ao seu “lar” na hora de dormir, ou mesmo passava algumas noites em outras residências, seja com amigues ou contatinhes, mas que, agora, literalmente do dia para a noite, você não tem mais esta opção.

Imagina que, a partir daquele momento, você tenha que permanecer 24 horas por dia, sete dias por semana com a sua família, que, desde que você começou a se descobrir gay, lésbica, bissexual, travesti ou transexual passou a te tratar de forma diferente.

Imagina que agora todo o teu convívio humano se resume a um grupo de pessoas com que você tem até laços sanguíneos, mas te rejeita, com quem você não tem muito a compartilhar, com quem você discorda em gênero, número e grau.

Infelizmente, para muitas pessoas LGBTI+ esta situação não é imaginária. Elos vivem tudo isso. Esta é a cruel realidade a que sujeites de identidade gênero e orientação sexual diversas foram submetidas quando se decretou o isolamento social.

Conforme pesquisa realizada pelo coletivo #VoteLGBT, com o apoio do escritório de inovação Box 1824, os problemas ligados à esfera social e familiar foram o segundo maior impacto da Pandemia de Covid-19 na vida da população LGBTI+.

O estudo, que ouviu mais de 10 mil pessoas em todo o país, destaca que diversas formas de preconceito ou violência (verbal, moral, psicológica e até física) transformam os ambientes mais comuns da existência humana em cenários de hostilidade.

“O impacto maior é ficar em quarentena com minha família. Como tenho que dividir residência com pessoas que não me aceitam como gay, me sentir confortável, dialogar livremente, me sentir pertencente, é algo ‘inexistível’. Sinto falta da rua, sinto falta dos meus amigos. A solidão está insuportável, vejo uma casa lotada mas me sinto mais só do que nunca”, relata uma das participantes do levatamento, mulher cis lésbica, cuja identidade foi preservada.

O militante LGBTI+ Francisco Pedrosa. Foto: Arquivo Pessoal

Tais fatores já eram frequentemente apontados como prejudiciais à saúde da população dissidente da cis-heteronormatividade. É o que lembra Francisco Pedrosa, presidente do Grupo de Resistência Asa Branca, ONG pioneira na defesa de direitos LGBTI+ no Ceará.

“O universo de exclusão, de violências, já habitam o cotidiano das comunidades LGBTI+. Então, com essas novas regras de convívio social, dentro do isolamento, a gente vê aflorar as violências, as intolerâncias que a gente tem dentro do próprio convívio familiar”, destaca o ativista.

Para ele, também colabora para tal contexto a situação de dependência que acompanha as limitações provadas pela crise de saúde. Entre eles, Pedrosa destaca a diminuição de recursos financeiros, que causa a diminuição da autonomia das LGBTI+.

O pesquisador Mário Fellipe. Foto: Arquivo Pessoal

Para o pesquisador Mário Fellipe, doutorando e mestre pelo programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), a forte e reincidente LGBTIfobia dentro das famílias é produto da cultura heteronormativa, ou seja, da sociedade que define o comportamento heterossexual (prática sexual e afetiva entre indivíduos de sexos opostos) como norma.

“Vivemos em uma cultura que instituiu a heterossexualidade como norma e naturalizou isso dentro da nossa sociedade (…) A família nuclear burguesa, que foi construída historicamente como a família normativa, como a família que funcionaria como núcleo de reprodução do capital e associada a padrões religiosos cristãos”, explica Mário Fellipe.

Retorno ao armário

Ilustração: Adaptado do Freepik

Francisco Pedrosa destaca que o fenômeno do isolamento social tem produzido um outro efeito doloroso, que é o chamado retorno ao armário, ou seja, um processo de auto-negação da sexualidade e da identidade de gênero.

“As pessoas, muitas vezes, tem que entrar num processo que é um novo armário. É um armário para se proteger das intolerâncias que se colocam no universo de convívio familiar, dentro de uma situação bastante estressante que é o enfrentamento da pandemia”, destaca o presidente do GRAB.

Ciclo de Exclusão

Para o coletivo #VoteLGBT, para entender as constatações relacionadas às esfera social e familiar, é preciso considerar que pessoas LGBTI+ estariam submetidas a um “Ciclo de Exclusão”, que compreende seis principais fatores que mais impactam a vida desta população.

Na maioria dos casos, tal processo começa na família, passa pela formação educacional, escolar e também familiar, e, como um efeito dominó, limita as chances de inserção no mercado de trabalho e de acesso à saúde. Somado a isso, há também a falta de representatividade política e a violência, o estágio final. Acompanhe na imagem:

Fonte: ThinkWithGoogle – “Por que sua marca deveria saber o que a comunidade LGBTQIA+ espera dela”, Outubro de 2019.

Solidão

Para outra fatia deste argumento social, assumir-se enquanto LGBTI+ significa começar uma nova vida, longe até da família. “Travestis e transexuais geralmente já viviam isoladas, por questões, inclusive, de evitar violência”, destaca a Amanda Félix, travesti, de 23 anos.

Longe de laços sanguíneos, estas pessoas constroem novas estruturas de afeto, mas, em meio à quarentena, estão novamente apartadas de amigues e companhieres, o que leva a voltar a se sentir só no mundo.

“A gente tem a solidão que permeia a vida das pessoas LGBTI+, por conta do assumir-se. E o que vem depois disso, a gente tem muitas que moram sozinhas, a própria solidão do viver enquanto LGBTI+, então isso se agrava também”, pontua Francisco Pedrosa.

“Parte importante da minha sociabilidade depende de encontros marcados por aplicativos ou idas em bares / baladas. Moro sozinho, então, sem essas opções de sociabilidade, eu sinto muito sentimento de solidão, fracasso, abandono etc, sentimentos que já existiam e foram potencializados pelo isolamento social”, relata homem gay em depoimento para o diagnóstico da #VoteLGBT.

Quem são os mais vulneráveis?

Ilustração: Adaptado do Freepik

Ainda levando em consideração os dados da #VoteLGBT+, as novas regras de convívio social mostraram-se um problema que aumenta com a idade. Enquanto entre as pessoas com 15 a 24 anos essa foi a maior dificuldade para 10%, entre os com 45 anos ou mais, essa foi questão colocada como a maior dificuldade para 26%.

Já a convivência familiar mostrou-se um problema maior para os dois extremos etários. Cinquenta por cento das pessoas que indicaram convivência familiar como a principal dificuldade durante o isolamento tinham entre 15 e 24 anos. Mas, entre 55 anos ou mais, a chance de escolher essa opção foi duas vezes maior do que entre as de 15 a 24 anos.

Quanto maior a idade, maior a solidão. As pessoas que estão nos grupos de 45 a 54 anos (60% a mais de chance) e 55 ou mais (80% a mais de chance) reportam a solidão como o maior problema quando comparados com as pessoas de 15 a 24 anos.

E es não-bináries apresentaram três vezes mais chances que as pessoas com identidades masculinas de indicar a solidão como o maior impacto da pandemia.

Além da pandemia, LGBTIs enfrentam o pandemônio

Bolsonaro ataca LGBTIs no Congresso. Foto: Arquivo / Câmara dos Deputados

O problema se agrava pois não se enfrenta unicamente os impactos inerentes à pandemia, mas também o pandemônio, como o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP) vem chamando o presidente Jair Bolsonaro.

Para Mário Fellipe, desde a chegada de Bolsonaro e dos seus aliados ao poder, tem-se percebido um recrudescimento de uma onda conservadora no Brasil, que fortaleceu a propaganda de um padrão normativo de família. “Eles negam a possibilidade de constituição de outras vidas para além dessa vida considerada normal, considerada heterossexual. Isso faz com que as famílias funcionam como espaço de não acolhimento para essa população”, destaca.

Dessa forma, o doutorando em sociologia acredita que há um processo de renovação das violências impostas a LGBTIs. “Há a interiorização destes valores de uma cultura heteronormativa que se reflete nas ações destes sujeitos, destas pessoas, de não acolhimento, de violência, de preconceito”, destaca.

“Ter que ficar ‘enclausurada’ com algum familiar que não entende e/ou respeita a sua orientação sexual é, ao passar dos dias, sufocante. Até um corte de cabelo vira motivo para algum problema”, relata mulher lésbica para o estudo da #VoteLGBT.

O pesquisador da UFC reforça que, por mais que tenha acontecido uma série de ganhos jurídicos, sociais, de reconhecimento das homorapentalidades e de aparição nos meios de comunicação de massa nos últimos anos, LGBTIs enfrentam “um governo que vem pautando a sua política a partir da implementação de pautas morais (…) uma concepção de política extremamente obsoleta, extremamente atrasada, que não dá mais conta pra um mundo social contemporâneo, um mundo de mudanças, um mundo de conquistas, de avanços”, enfatiza.

Rede de apoio

Centro Referência LGBT Janaína Dutra

Centro de Referência LGBT. Foto: Divulgação

Conforme Tel Cândido, coordenador do Centro Referência LGBT Janaína Dutra (serviço de proteção e defesa desta população mantido pela Prefeitura de Fortaleza), o contexto da pandemia lançou uma lente de aumento sobre problemas sociais já profunda e historicamente enfrentados por este segmento.

O técnico destaca, dessa forma, a importância da existência do Centro, que continuou, de forma adaptada, funcionando durante o período de isolamento social.

Tel relata que o órgão continuou a realizar, de forma virtual, os encontros do Grupo de Apoio e Convivência para travestis e transexuais, atendendo ainda outras 50 pessoas que apresentaram 58 demandas, como denúncias de LGBTIfobia, orientações sobre retificação de prenome e gênero no registro civil e solicitação de informações para acesso a benefícios socioassistenciais ou previdenciários.

O Centro de Referência pode ser acessado pelo telefone (3452.2047), através do e-mail (crlgbtfortaleza@gmail.com) ou em sua sede, na Rua Pedro I, 461 (Centro, Fortaleza), agora em novo horário de funcionamento, de 9 às 12h e das 13 às 18h, de segunda a sexta-feira.

Ações de movimentos sociais

Outra ação de apoio tem sido as ações de organizações civis, como a Vaquinha LGBTI+ mantida pelo CENAPOP – Cultura e Eco-cidadania e o Coletivo Mães pela Diversidade, que recebe doações em dinheiro e converte em cestas básicas, itens de higiene pessoal e limpeza. Estes itens são destinados a quem passa por vulnerabilidade em meio à crise sanitária.

“Eu conto muito com a solidariedade das outras manas transexuais e travestis, que é a família que eu criei aqui fora. Recebi algumas cestas básicas do Vaquinha LGBT, a associação de travestis também veio, eu tenho conseguido me manter aqui ainda bem, com a ajuda dessa família que eu consegui construir aqui fora, para além dos laços sanguíneos”, relata Amanda Félix sobre os apoios erguidos no Ceará.

Governo do Estado

O Governo do Ceará também oferece uma série de serviços por meio da Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS), como o Vale Gás Social, que se direcionam aos públicos vulneráveis em geral.

O órgão inclusive lançou nesta quarta-feira (8), um bate-papo virtual disponível no site (www.sps.ce.gov.br) para facilitar o atendimento de todes.

Na nossa série, leia amanhã sobre as dificuldades econômicas

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