Que línguas EXUFREIREanas experimentamos?

A colunista Silvia Maria provoca o encontro entre o orixá Exu e Paulo Freire, no mês em que se celebra os 99 anos do educador que é patrono da educação no Brasil

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Por Silvia Maria Viera, colunista Mídia Queer

Dia 19 de setembro foi aniversário de 99 anos de Paulo Freire. Essa data é significativa pra mim que estou conectada com ele através do seu/nosso natalício. E para homenagear esse ser que tanto me inspira, provoco você a pensar a relação deste com outro ser que me ensina também e que está presente em minha vida, Exu.

Que características de Exu uma educadora, como eu, deve internalizar na sua práxis em busca das africanidades e que iluminações a pedagogia de Freire nos traz?

Esse orixá, que é um dos mais importantes do panteão africano, tem uma característica importante que é a polifonia, pois além de ser o responsável pela comunicação entre os orixás é também o responsável pela comunicação entre os orixás e os seres humanos, pois é o orixá das portas e dos caminhos e das múltiplas falas. Neste sentido, conto-lhe a seguinte história:

Quando Obatalá chegou neste mundo, nada conhecia sobre ele e tinha curiosidade de saber de todas as coisas. Foi por este motivo que um dia pediu a Exu que lhe servisse no almoço aquilo que houvesse de melhor sobre a Terra. Exu foi ao mercado e ali comprou uma língua bovina que, com as próprias mãos, limpou, temperou e, depois de assar, serviu a Obatalá. Finda a refeição, muito agradecido, Obatalá disse a Exu:

– O prato que me serviste é realmente delicioso. (…) Quero agora, amigo Exu, que me sirvas a pior coisa que possa existir nesse mundo.

No dia seguinte, Exu foi novamente ao mercado, de onde retornou com mais uma língua bovina. Novamente preparou-a da mesma forma que a anterior e serviu-a a seu amo.  Depois de comer, Obatalá repreendeu Exu:

– Quer me parecer que não entendeste bem o meu pedido. Ontem me serviste uma língua como sendo a melhor do mundo, comi e gostei, aprovando inteiramente a tua escolha. Em seguida te pedi que me servisses, hoje, a pior coisa do mundo e, mais uma vez, me serves língua. O sabor é exatamente o mesmo da que me foi servida ontem e gostaria de saber como pode uma coisa ser, ao mesmo tempo, a melhor e a pior coisa do mundo. Ou será que se trata de mais uma de suas brincadeiras ? (…)

Com ar sério, Exu começou a explicar:

– A língua é, sem dúvida, a melhor coisa do mundo e, contraditoriamente pode ser a mais perigosa e ruim de todas. Quando é usada para coisas boas tais como: abençoar, fazer preces em louvor dos orixás, orientar corretamente, cantar a boa música, recitar poesias, falar de amor e ensinar os bons costumes é, então, a melhor coisa do mundo. Quando, ao contrário, é utilizada para caluniar, amaldiçoar, mentir, fomentar a discórdia e a guerra, torna-se letal.  É a pior de todas as invenções de nosso pai Olodumare. (…) Tudo depende da forma como é usada por seu dono, para que possa ser classificada como a melhor ou a pior coisa do mundo.

E foi então que Obatalá, compreendendo o ensinamento que lhe era dado por Exu, nunca mais aceitou língua em suas refeições.

Texto de Martins (2008, p. 37-38)

Este mito mostra as várias faces de Exu, uma primeira é a do movimento, quando ele vai ao mercado com o objetivo de apresentar o que tem de melhor e pior no mundo, porém ele não procura qualquer coisa, diante dos vários caminhos que poderia seguir ele faz uma escolha.  Isso me lembra Paulo Freire quando afirma que existe uma intencionalidade na ação, e que a educadora não pode ser neutra diante da relação entre opressoras(es) e oprimidas(os), pois neutralidade beneficia apenas a classe privilegiada.

Exu transforma o estático em dinâmico ao apresentar o dois lados da mesma coisa. Mostrando um jeito diferente de ver as coisas, ele se expõe e tem uma atitude ousada. Está aí a boniteza de ser educadora, na ousadia de denunciar e lutar contra a reprodução ideológica dominante.

Outro ponto que o mito revela é o processo dialógico que Exu desencadeia. O Orixá da comunicação, ao problematizar a língua como algo que é a melhor e a pior coisa do mundo, estimula o pensamento crítico de Obatalá.  O(A) educador(a) deve ser um pólo de diálogo na perspectiva de que somos sujeitos em construção.

O diálogo entre Exu e Obatalá pode ser visto como algo transgressor, haja vista que o primeiro é servo e o segundo o amo. Este diálogo das(os) diferentes me faz entender a máxima da “Pedagogia do Oprimido”, de Freire, que diz: somente as(os) oprimidas(os) podem libertar as opressoras(os). Esta transgressão difere da postura autoritária e centralizada de educadoras(es) nos processos de ensino-aprendizagem que não levam em consideração o contexto e o repertório de saberes das(os) educandas(os). A última palavra é sempre da(o) educadora(o), aquela(e) que supostamente domina o saber e consequentemente o poder.

Para que exista verdadeiramente o diálogo se faz necessário uma relação horizontal entre educandas(os) e educadoras(es). Exu aprendeu, ao procurar a melhor e a pior coisa do mundo, e ensinou a seu amo os vários significados da língua. Afinal, parafraseando Freire, “ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os seres humanos se educam entre si mediatizados pelo mundo.”

A existência do racismo e de toda forma de preconceito revela o silêncio de uma sociedade que trivializa a necropolítica – o uso do poder social e político para ditar como algumas pessoas podem viver e como algumas devem morrer – e se cala diante desta realidade. Exu e Freire preparam a língua (a palavra) com o tempero da criticidade para que essa se torne a melhor coisa do mundo. No entanto, ambos reconhecem que ela pode matar, na medida em que se cala, silencia e impõe uma voz de opressão.

Silvia Maria Vieira dos Santos: Historiadora e Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação Brasileira – UFC. Professora da Rede Estadual e técnica pedagógica da equipe de Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade da CODIN/Seduc.

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