Mário Fellipe: O desespero do perdedor

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Fanáticos e extremistas religiosos que protestaram contra a retirada de feto de criança de 10 anos. Foto: Anderson Nascimento/Estadão Conteúdo
Por Mário Felipe, colunista Mídia Queer

Assistimos esta semana a revoltante notícia de um estupro de uma criança de 10 anos de idade pelo seu próprio tio, no Estado do Espírito Santo. Soube do ocorrido através de um vídeo publicado e compartilhado massivamente em uma rede social em que aparecia um grupo de manifestantes na entrada de um hospital causando tumulto e reivindicando a favor da não realização do aborto da criança. Antes de tudo, é importante salientar que o aborto é justificado legalmente no Brasil em caso de estupro e quando há risco de morte para a gestante, situações que se aplicavam à vítima.

O que me causou fastio e revolta com todo esse evento, além da violência física e psicológica sofrida por essa criança, tanto aquela impetrada pelo seu tio, como a dos aparatos médico-legais e midiáticos, foi a mobilização de um grupo de fundamentalistas religiosos (incluindo, parlamentares) que, depois de divulgada informações pessoais da menina e do hospital onde ela se encontrava, aglomeraram-se na porta da unidade de saúde reivindicando o impedimento do aborto já autorizado, por lei, pela justiça.

A alegação moral que está por trás do discurso de defesa de um feto em detrimento da vítima e o clamor social que isso causou me parece se aproximar, embora em menor proporção, da atitude negativa e violenta de algumas pessoas com relação à participação do Thammy Gretchen na campanha do dia dos pais da Natura.

Embora estejamos falando de contextos bastante distintos, o descontentamento social com relação a esses eventos encontra sua justificativa em um fundamento de ordem moral. Quando falamos de moral, não estamos falando de um conjunto abstrato de valores que norteiam a ação humana, embora seja dessa forma que muitas vezes a moral é operacionalizada na cultura. Falar de um sistema de crenças formado por um conjunto de valores que se justificam por si mesmos e que desconsideram a especificidade do contexto social em que eles se inscrevem é, no mínimo, ignorar as necessidades concretas das pessoas.

O caso do estupro da menina de 10 anos, a reação conservadora à campanha do dia dos pais da Natura, o assassinato recente de três travestis no Ceará em uma semana possui uma raiz comum: o definhamento do projeto daquilo que conhecemos como família tradicional.

A resposta à agonia da perda de hegemonia de uma sociedade que não se sustenta se dá através da violência, pois é a forma mais rápida de visibilizar uma existência arruinada e em descompasso com uma sociedade que vem visibilizando feridas históricas estruturais que sustentavam nossa identidade nacional e naturalizavam diversas formas de violência.

Negar a realidade presente, romantizar o passado, esconder-se por detrás de uma religião, ou melhor, apegar-se desesperadamente a uma crença e esperar dela todas as respostas da vida humana e social, são expressões não só de um projeto político em curso no Brasil, capitaneado por setores conservadores da extrema direita, mas sintomas de uma existência dependente e que só existe na sobra de um grande líder (seja uma figura política, seja um sistema de valores morais fixos).

Uma subjetividade que parou no tempo e que olha o passado com saudade, pois não consegue se fixar no presente e projetar o futuro. São pessoas que dizem: “não existem mais empregadas como antigamente”; “ela é como se fosse da família”; “mulher tem que se dá respeito”; “você sabe com quem tá falando?” “Não sou preconceituoso, tenho até um amigo negro”; “basta você se esforçar que você consegue”…

Essas expressões são reveladoras de um conjunto de valores que orientam e legitimam práticas sociais. Como já dizia a filósofa Judith Butler, as palavras pesam porque somos seres de linguagem que nos reconhecemos a nós mesmos e aos outros a partir de um conjunto de signos valorativos que formam o que chamamos de cultura. Se os gritos desesperados na porta do hospital chamando uma criança de 10 anos que foi violentada pelo seu próprio tio durante quatro anos de sua vida não nos comovem, não nos indignam, é porque há algo de muito errado no curso do nosso processo civilizacional. Se, no calor de uma crise sanitária de ordem planetária, uma justificativa de matriz ideológica se ergue e se impõe como um muro de bronze, ao mesmo tempo, protetor e legitimador de sujeitos e práticas sociais, é porque suas palavras de ordem ainda causam barulho.

Grupos fanáticos tentaram invadir hospital que faria o procedimento na criança estuprada. Foto: Reprodução/Facebook

A violência do grito e a intensidade do barulho é uma resposta à perda de espaço e ao questionamento de privilégios de uma sociedade que durante muito tempo não se pensou e naturalizou suas questões.

Os fundamentalistas que chamam uma menina de 10 anos de assassina, que teve o seu corpo e sua história brutalmente violados, é um quadro de um grupo de indivíduos que sabem que perderam e que, por não aceitarem sua derrota, agarram-se e investem a força que lhes restam nos seus discursos prontos, os únicos que lhe servem de âncoras, companhias fiéis que os impedem de pensar livremente e sustentar o preço ético da liberdade, que é o de pensar por si mesmo sem perder de vista que esse si mesmo só se faz a partir do outro.

Mário Felipe

É doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará e Psicanalista em formação pelo Corpo Freudiano – sessão Fortaleza.  

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