Gean Gonçalves: De que lado está Angela Davis?

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Foto: Yalonda M. Tiago, Crônica de SF.
Por Gean Gonçalves, colunista Mídia Queer

Não há dúvidas de que Angela Davis é uma das vozes fundamentais do nosso tempo. Caso esse nome ainda não tenha chegado até você, conto, brevemente, que Davis se tornou famosa a partir dos anos 1970, pela participação da mesma no Partido Comunista e no movimento Panteras Negras, grupo de combate ao racismo, principalmente, nos episódios de violência policial. Ela é filósofa, professora de estudos feministas e um ícone da luta pelos direitos civis.

É abertamente uma mulher de esquerda, compromissada com a justiça social, que foi perseguida politicamente pelo FBI. Em virtude de sua prisão, após o desparecimento por meses, uma verdadeira caçada, foi responsável por tornar midiático o debate sobre a condição negra na sociedade norte-americana. Mais detalhes dessa história podem ser conhecidos em filmes, livros e outros registros da campanha “Libertem Angela Davis”.

Angela é uma renomada autora, feminista negra, com um pensamento forte e estratégico para se romper todas as assimetrias sociais. Atualmente, Angela tem sido uma das figuras públicas visíveis no movimento Black Lives Matter ou Vidas Negras Importam, amplamente vocalizado ao redor do mundo após o episódio da morte de George Floyd.

Todavia, com 76 anos, Davis tem publicamente dado suporte a defesa das vidas de pessoas trans negras. Você deve ter lido aqui, no Mídia Queer, sobre o assassinato de duas mulheres trans negras recentemente nos EUA – Dominique Rem’mie Fells, na Filadélfia, e Riah Milton, em Ohio. Recentemente, Angela Davis falou em lives, comovidamente, sobre o trabalho da deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL), primeira mulher transexual da Assembleia Legislativa de São Paulo.

Davis também esteve ao lado da comunidade queer negra em um debate comandado pelas artistas Bob The Drag Queen e Peppermint, ambas de RuPaul’s Drag Race, na ocasião ela enfatizou: “se estamos verdadeiramente interessados em eliminar a violência racista do mundo, temos que levar em consideração as mulheres negras trans, provavelmente, o alvo das mais consistentes formas de violência”.

Em mais um episódio das disputas de sentido entre transfeministas e aliados das pessoas trans com o feminismo radical, interpretou-se as falas de Angela Davis como uma adesão ao “lobby queer”. Mulheres que se alinham a uma vertente radical do feminismo disseram que a ativista teve que ceder, foi cooptada pelo medo da “cultura do cancelamento”. O que soa cômico diante de alguém com uma trajetória com tanta coragem e de tanto enfrentamento.

O que ocorreu, e é estrategicamente apagado por tais mulheres, foi um desapontamento com Angela Davis. Ela demonstrou de que lado está e se trata de uma posição completamente distinta da que JK Rowling vem tomando, para ficar em um exemplo midiático. Durante muito tempo mulheres negras não foram lidas enquanto mulheres. Hoje, mulheres trans e travestis lutam pelo reconhecimento de gênero. Angela reconhece que há compatibilidade entre essas experiências de não-mulheridade e sabe ainda do perigo que é para o feminismo categorias que essencializam mulheres.

A perspectiva de Davis é de um feminismo interseccional, anticapitalista e antirracista. Para ela, toda forma de injustiça social tem impacto nas demais formas de desigualdade e injustiça. O feminismo radical ganha contornos racistas quando não consegue conceber a ponte fértil de trocas de experiências de mulheres cis negras com mulheres trans, pautas que cruzam experiências de subalternidade.

Davis tem trazido à tona a necessidade de levantar nossas vozes contra todos os tipos de violação e injustiça, de modo que elas não sejam apagadas, ignoradas. É parte dessas violências a manutenção de um pensamento que separa, que divide, e que, portanto, impossibilita alianças transformadoras. Davis tem testemunhado e incentivado protestos em virtude da morte de pessoas LGBTI+ negras, como uma caminhada com 15 mil pessoas em Nova York.

Ao redor do mundo, nesse momento se criou uma efervescente consciência pública sobre o racismo policial, porém muitas vidas LGBTI+ negras têm sido ignoradas nessa e outras questões. Sabemos que no Brasil, país de altos índices de violência transfóbica, mulheres trans negras foram e são despidas e espancadas pela força de segurança, por exemplo, em carceragens masculinas, vide o ocorrido com Verônica Bolina em 2017, que apesar do acontecimento ter provocado ações e indignação nas redes digitais entre os agentes dos direitos humanos e dos direitos LGBTI+, não resultou em protestos de rua, mas nem todas os corpos parecem dignos de comoção.

Na mídia hegemônica, em virtude das redes de indignação formadas, se viu nas últimas semanas mais projeção sobre as vulnerabilidades sociais de homens cis negros jovens, alvos comuns da violência racista do Estado, mas nesse debate as mortes de mulheres negras e de pessoas LGBTI+ negras continuam como barulho inaudível e irreconhecível.

É importante encarar como a LGBTfobia, em todas as práticas de intolerância e ódio, está entrelaçada com o racismo. Daí vem a necessidade de narrar como as vidas negras LGBTI+ também importam, bem como se torna fundamental não somente se deter sobre quem fala contra nós, mas vocalizar quem está conosco nessa caminhada – e é o caso de Angela Davis.

Gean Gonçalves: Jornalista, professor e doutorando em Comunicação na USP. Foi repórter da imprensa LGBT – na revista Junior e no portal MixBrasil. Acredita em uma teoria bixa/queer para a comunicação social.

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