Por Mário Felipe, colunista Mídia Queer
Em que medida o encontro dos afetos com o capitalismo vem implicando em mudanças nas relações interpessoais e na produção de uma nova subjetividade?
A transformação da vida íntima e afetiva, que deixou de assumir uma função espontânea de expressão para uma outra de caráter mais racional, vem sendo gestada no contexto de uma sociedade informatizada e de inflexões no modo de produção capitalista. Tais mudanças acabaram por instituir novas formas de relação entre as pessoas e um novo tipo subjetividade.
Essa nova racionalidade de mercado, que ganhou o nome de neoliberalismo, estrutura-se nos anos 1970, a partir de um cenário de competição generalizada, submetendo as relações sociais segundo um modelo de mercado e “modificando o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa”.
Como modelo desse processo, exemplifico o modo de gestão de si na plataforma instagram, que vem se transformando em um espaço comercial de produtos e serviços. A empresa tem viabilizado a monetização através da adoção por parte dos usuários de estratégias de divulgação. Esse processo se dá mediante à incorporação de uma lógica de mercado e concorrência, levando à conversão da vida subjetiva, antes íntima e privada, em domínio público. O que entendemos como o eu contemporâneo torna-se, então, o efeito de constantes processos de edição, de racionalização e de gestão estratégica.
Entendendo o neoliberalismo como uma razão de mundo que determina um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência (a partir da ideia de Pierre Dardot), procuraremos analisar os efeitos desse processo concorrencial considerando os aspectos sociais e subjetivos produzidos por essas mudanças de cunho estrutural. Procuro compreender em que medida um “conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens” implica na deflagração de um processo de individualização das relações sociais e na perda da solidariedade coletiva, bem como no surgimento e desenvolvimento de um modo de vida marcado pelo cansaço e pelo ceticismo.
Defendo que esse novo tipo de racionalidade, pautado na concorrência e no espírito gerencial se dá simultaneamente a mudanças no campo afetivo ou talvez às expensas delas. A instauração do autogoverno tem feito do ceticismo a própria “estrutura de sentimento das sociedades capitalistas tardias, implicando em um desvio radical da cultura do amor e do romantismo presentes nos séculos XIX e XX”.
Indo ao encontro dessa hipótese confirmada em entrevistas realizadas pela socióloga Eva Illouz com usuários de sites de relacionamento direcionados ao público heterossexual, o ceticismo e o cansaço também têm aparecido em queixas recorrentes por parte dos usuários do Scruff e do Grindr, aplicativos de buscas homoeróticas que compõem o meu universo investigativo. A maioria dos usuários parece não saber explicar as constantes idas e vindas ao aplicativo, presentes no movimento do instalar-desinstalar. Muitos associam o cansaço sentido à automaticidade das interações que cria uma rotina previsível na experiência do encontro, que se distancia da experiência do amor romântico na qual foram treinados.
A formulação de Ilouz acerca do processo de busca de parceiro na rede, como sendo o resultado da conjunção de um subjetivismo intenso e da objetificação do encontro, é um diagnóstico do sentimento de cansaço e da postura cética apontada por alguns usuários acerca de suas experiências em aplicativos de relacionamento. Isso faz parte da estratégia mobilizada pelas empresas que gerenciam as plataformas, pois permite definir mais facilmente os seus clientes e direcionar seus serviços para cada nicho específico. Nesse mercado, somos nós, exercendo ações consideradas banais e cotidianas como curtir, compartilhar, dar likes, quem fazemos o trabalho de aperfeiçoamento dessas plataformas. A estratégia de misturar ambiente de trabalho com espaço de lazer vem sendo uma sacada genial do capitalismo em sua versão contemporânea. Enquanto fruímos dando likes em nossos usos semiconsciente nas redes, contribuímos para o enriquecimento de empresas que precarizam nosso trabalho e condicionam nossa existência social a um formato empresarial.
A adoção de um modelo roteirizado de apresentação de si, expresso em um questionário que cada usuário tem de responder para se converter em um perfil, bem como as interações roteirizadas, são evidências de como as transformações geridas no campo empresarial estão sendo assimiladas pelas pessoas em seus usos cotidianos das redes sociais.
O surgimento da cultura das startups, na década de 1990, constitui um dos efeitos do processo de reestruturação produtiva do capitalismo, iniciado na década de 1970, e que instituiu a flexibilidade como a nova norma do modelo produtivo. Imersos em um ambiente de incertezas profissionais, surge, no contexto dessas empresas emergentes uma nova modalidade de profissional: o empreendedor, “uma mescla de burguês-de-si-próprio e proletário-de-si-mesmo”. O iFood é um exemplo paradigmático dessa modalidade de empresa que extrai mais-valor dos seus “colaboradores” sem se preocupar em ampará-los com os direitos trabalhistas historicamente conquistados. O que chamam de flexibilidade no trabalho promovido por essas empresas modernas consiste, sob a ótica do sociólogo Ricardo Antunes, em um conjunto de atividades laborais “sem jornadas pré-determinadas, sem espaço de trabalho definido, sem remuneração fixa, sem direitos, nem mesmo o de organização sindical e onde até o sistema de ‘metas’ é flexível: sendo as metas do dia seguinte sempre maiores do que a do dia anterior”.
Esse novo modo de gerenciamento vem sendo pautado no imperativo da competitividade, presente tanto nas práticas governamentais, como nas políticas institucionais e nos estilos gerenciais. A ideia de capital humano nada mais é do que a expressão de uma subjetividade contábil, consistindo em uma relação do sujeito consigo mesmo estruturada por uma noção de valor.
Quanto mais produtivo o sujeito for, mais valor ele terá na dinâmica dessa nova ordem social. Essa ideia do valor associado ao índice de produtividade do indivíduo acaba por produzir um ambiente de concorrência constante que culmina no enfraquecimento de formas coletivas de solidariedade.
Analisando um perfil do instagram “Academia de Mudanças,” percebi de que maneira o discurso do mercado tem atuado a fim de produzir essa subjetividade-empresa. Amparando-se na máxima – SER INTENCIONAL -, o criador do instituto divulga seus trabalhos, pensamentos e rotina, criando aproximação com o público através de técnicas de planejamento estratégico, apropriadas do campo da administração. O autor do perfil nos ensina que pessoas podem ser treinadas, bastando empenho e força de vontade. A partir da divulgação de técnicas para vencer o medo, complementadas por discursos sobre felicidade e inteligência emocional, guiadas por uma série de métodos e metas auto-motivadoras, o autor vai criando aquilo a que ele visa produzir: os indivíduos intencionais. A divulgação de imagens de alguns clientes que passaram pelo seu curso performando posturas de superação, aproxima-se de estratégias de rituais religiosos que envolvem o sujeito a partir da repetição de palavras de efeito e de técnicas corporais que criam um cenário envolvente, instilando no sujeito a crença da mudança a partir da repetição e do esforço.
Esses indivíduos treinados por facilitadores motivacionais acreditam que política e gosto não se discutem, por se tratar da expressão de escolhas individuais, e que gerem sua empresa da mesma forma que gerenciam suas vidas, a partir de um cálculo de metas e de um sistema de recompensas. Eles costumam desprezar o pensamento crítico, diminuindo-o a abstração, perda de tempo e até loucura. A extensão da lógica do pensamento empresarial a todos os domínios da vida social visa, em última instância, à manutenção do silêncio por meio do sorriso e da automotivação constante.
A tese de Eva Illouz é de que “esse modelo de gestão da vida, onde capitalismo e afetos andam lado a lado, a personalidade do indivíduo tornou-se a chave do sucesso social e administrativo”. Isso se deu a partir da valorização da comunicação que se tornou o espírito da empresa. Em um meio marcado de incertezas profissionais, sociais e subjetivas, o que nos resta é a nossa capacidade de desenvolver um tipo específico de comunicação que se confunde com as estratégias de marketing adotadas pelas empresas. Para sairmos do ostracismo, sermos reconhecidos socialmente, sermos amados e garantirmos o nosso sustento precisamos desenvolver aptidões comunicativas capazes de fazer frente às exigências, sempre crescentes, do espírito concorrencial e da necessidade de sempre estar à frente.
Nas redes, usamos o eu de maneira criativa e produtiva, um eu editado por estratégias de marketing, onde quanto mais natural o sujeito realiza sua performance, mais credibilidade alcançará por parte de seus seguidores. Trata-se de uma estratégia de mercado chamada de “amigo confiável”, idealizada pela empresa Facebook.
Em aplicativos de busca para homens, esse processo de midiatização de si dá-se através da exibição de fotos que simulam uma heterossexualidade. Sendo assim, o roteiro da interação passa por um processo de recontextualização, através de técnicas de racionalização de si e do encontro. A tecnologia, nesse sentido, ao invés de empobrecer a vida íntima, inflaciona-a. Nunca usamos tanto as redes para expor as nossas emoções, nossos amores, ódios, nossa carência emocional, nossos posicionamentos políticos. Sentimo-nos esvaziados, não porque a internet por si mesma produza relações mais superficiais, mas devido à dificuldade de sair desse enquadramento estratégico que tem se expandido a todos os domínios da vida social a ponto de não nos reconhecermos mais fora do estratégico.
Enredados no estratégico, sofremos de um esvaziamento, uma espécie de falta de sentido e um saudosismo por modelos de relação supostamente mais sólidos. Tendo ao nosso favor a comunicação e a nossa força de vontade, somada a uma certa convencionalidade corporal (uma imagem que venda) e a técnicas padronizadas do marketing e da administração convertemo-nos em um indivíduo-empresa. Sendo os únicos responsáveis pelo nosso sucesso ou fracasso, somos absorvidos pela ansiedade a fim de garantir nossa sobrevivência que passa a depender, única e exclusivamente, de nossa capacidade estratégica de dominar as técnicas de vendabilidade das redes.
A sociedade das capacitações torna a network um elemento fundamental na manutenção do indivíduo no mercado. Se somos considerados incapazes dentro dessa nova lógica, tornamo-nos dispensáveis para o mercado. Essa cultura onde a lógica do mercado reina de forma soberana o fracasso torna-se um tema proibido.
Sem segurança no trabalho e nos afetos, as pessoas são tomadas de uma profunda falta de sentido com relação ao que elas são e acerca da importância do seu papel no mundo.
Diante de tantas incertezas, qual a nossa margem de ação? Como se projetarão as relações sociais e o entendimento do que somos? E mais importante, como podemos fazer frente a uma estrutura social que uniformiza os distintos domínios da vida a uma lógica empresarial?
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Mário Felipe
É doutorando e mestre pelo programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e bacharel em Design de Moda pela mesma universidade. É pesquisador do Núcleo de Pesquisas sobre Sexualidade, Gênero e Subjetividade (NUSS/UFC) e Psicanalista em formação pelo Corpo Freudiano (seção Fortaleza). É também bacharel em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Tem experiência na área de Sociologia da Moda, História da Indumentária, Sociologia e Antropologia do Corpo, Estudos de Gênero e de Sexualidade, Sociologia e Antropologia digital.