Caso Mari Ferrer: quando o sistema de justiça escancara o machismo e a misoginia

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Por Samira de Castro

No país que registra um estupro a cada oito minutos – sendo que 83,93% das vítimas desse tipo de crime são mulheres, segundo os dados Anuário Brasileiro da Segurança Pública 2020 -, o recente julgamento de um caso ocorrido em Florianópolis/SC inaugura uma absurda e perigosa tese jurídica – a de “estupro culposo”. Além de abrir um precedente para a absolvição do réu, a aceitação, por parte do juiz, dessa excrescência legal utilizada pelo Ministério Público de Santa Catarina escancara o machismo e a misoginia do Sistema de Justiça brasileiro.

A influencer Mariana Ferrer, 23 anos, foi estuprada pelo empresário André de Camargo Aranha, durante uma festa, em 2018, num renomado complexo turístico internacional da cidade-balneário catarinense. A jovem, que era virgem, suspeita que tenha sido drogada, o que configura o crime de estupro de vulnerável, de acordo com o inquérito policial. Nas roupas dela, a perícia encontrou sêmen do empresário e sangue dela.

Mas, em setembro desse ano, a justiça daquele Estado resolveu aceitar a tese esdrúxula do MP de que o empresário não teria como saber que Mariana não estava em condições de dar consentimento à relação sexual, não existindo, assim, o dolo, a intenção de estuprar. Essa conclusão do promotor está sendo chamada de “estupro culposo”!!! Como não existe essa descrição no código penal brasileiro, Aranha se safou da condenação.

O caso de Mari Ferrer, que já havia sido assunto nas redes sociais por ocasião do seu trágico desfecho, voltou à tona nessa terça-feira (3), após o site The Intercept Brasil (TIB) publicar uma matéria e exibir cenas, até então inéditas, das audiências de julgamento. Ali, no ambiente virtual do TJSC, a jovem é colocada numa espécie de inquisição às avessas, como se criminosa fosse pelo simples fato de ser o que é: uma mulher bonita, que vivia de sua imagem na internet.

Acossada, a influencer tem sua idoneidade moral atacada pelo advogado do réu, sob os olhares do próprio Aranha, do promotor Thiago Carriço de Oliveira, e do juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis. No vídeo divulgado pelo TIB, o advogado de defesa, Cláudio Gastão da Rosa Filho, um dos mais caros de Santa Catarina, homem branco e de meia idade, mostra cópias de fotos pessoais da vítima retiradas de contexto – e sem qualquer relação com o estupro que esta sofreu – para desqualificar a jovem. Ele utiliza de expressões pesadas e faz um verdadeiro terror psicológico com a vítima, alegando que ela queria promoção pessoal.

O advogado só é interpelado pelo promotor do caso quando Mariana, aos prantos, apela ao juiz: “excelentíssimo, eu tô implorando por respeito, nem os acusados, nem os criminosos são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. Eu sou uma pessoa ilibada. Não cometi crime contra ninguém”. No ambiente virtual do TJ, vê-se o magistrado praticamente imóvel, sem qualquer atitude para interromper a sessão de horrores perpetrada pelo advogado do réu. Ouso dizer que há até uma certa concupiscência dos quatro machos brancos ali vendo uma mulher ser humilhada.

Anomalia jurídica e relações de poder

Em ordem cronológica, o juiz Rudson Marcos, o promotor que alegou estupro culposo, Thiago Carriço, o estuprador André de Camargo Aranha e o advogado que humilhou a vítima, Cláudio Gastão da Rosa Filho. Imagens: Reprodução da Internet

A tese da defesa de Aranha não é nova e a injustiça cometida contra Mari também não. Mas a anomalia jurídica criada pelo MP de Santa Catarina para livrar da cadeia o filho de um advogado figurão, sim. O conceito de culpabilidade utilizado no caso tenta “naturalizar” o comportamento predador do macho – a moça estava ali, dando sopa, é da natureza do homem consumar o ato. Nas palavras da advogada Raquel Andrade, que preside a da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB-CE, essa naturalização do comportamento do criminoso é motivo para que a gente não perceba o quanto as relações de poder são fundamentais na perspectiva da violência contra nós mulheres.

A jornalista Cecília Bizerra destaca que “as porteiras da violência patriarcal no âmbito das instituições sempre estiveram abertas, mas foram nacionalmente escancaradas com o golpe de 2016 e definitivamente legitimadas com a eleição de 2018”. “É um sintoma muito forte esses caras se sentirem à vontade de fazer uma defesa dessa em público. Mais sintomático e grave é o fato de outras instâncias não se posicionarem, isso ficar por isso mesmo e se criar esse precedente assombroso”, completa.

De fato, o caso Mari Ferrer mostra que Raquel e Cecília estão certas. No Brasil pós-golpe e eleição de Bolsonaro, em que se constituiu um governo neofascista, sustentado pela tríade militares-neopentecostais-neoliberais, o Sistema de Justiça retrocede a passos largos para retirar direitos das maiorias minorizadas: mulheres, negros e negras, população LGBTQIA+. Não por acaso, o ministério que deveria zelar pela promoção da igualdade dos direitos humanos é comandado por uma pastora que sugeriu, publicamente, que uma criança de nove anos levasse até o fim uma gravidez de risco, decorrente de abuso sexual e estupro.

Nesse país que teima em andar para trás, após 14 anos de alguns avanços, uma advogada negra, Valéria Santos, foi humilhada, algemada e presa durante uma audiência. Um homem que desferiu três facadas contra sua ex-mulher, na cabeça e nas costas, foi inocentado por ter agido em “legítima defesa da honra”. Uma patroa branca e rica deixou o filho da empregada de apenas 5 anos entrar sozinho em um elevador, enquanto mãe da criança passeava com o cachorro da família – e o desfecho triste dessa história culminou com a morte do pequeno Miguel. Não são histórias isoladas e sim exemplos de um Estado violador de mulheres, pretas e pobres.

Voltemos a Mari e ao vídeo vergonhoso da audiência. É preciso que gritemos, em alto e bom som: não existe estupro “sem a intenção de estuprar”! Porque estupro não tem, na sua essência, motivação sexual. Raquel Andrade reforça que a prática sexual é um instrumento para a dominação da vítima. A violação é motivada pela imposição de relações hierarquizadas de poder. É porque se sente superior a mulher, é porque acha que pode dispor daquele corpo que o homem comete o crime de estupro.

Da mesma forma que tivemos de ensinar a um defensor público da União que não existe racismo reverso, vamos gritar para que o Sistema de Justiça não seja incentivador de uma das piores violências contra o corpo das mulheres. Porque, como diz minha amiga feminista e comunista Nágyla Drumond, mulher é o único bicho que anda sobre duas patas e sente medo de ser violado.

Assista ao vídeo do The Intercept Brasil:

Samira é jornalista e membro do Conselho Consultivo da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadoras com Visão de Gênero e Raça

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