Silvia Maria: A nossa batalha para ocupar lugares e falas

Em sua primeira coluna para o Mídia Queer, a doutora em Educação Brasileira pela UFC, Silvia Maria Vieira, conta a dura realidade de existir e insistir em uma sociedade de hierarquias raciais, culturais, epistemológicas, sexuais e de gênero

2141
Ilustração: Adaptado do Freepik
Por Silvia Maria Vieira, colunista Mídia Queer

Quero iniciar esse texto saudando e reverenciando minhas ancestrais, mãe, avós, bisavós, tataravós e todas aquelas que estão em mim e que reconheço como minhas mais velhas.

Esta coluna será escrita por mim, uma mulher negra, apaixonada pelas histórias da minha avó e do meu tio João, por conta disso sou historiadora e pedagoga. Uma das poucas mestras e doutoras de cor neste país racista e desigual que não prioriza as políticas de equidade. Professora, educadora, pesquisadora nas áreas da educação, das relações étnico-raciais e de gênero. Mãe do Artur e da Kelly, mãe aprendente e muitas vezes cansada de exercer um papel que não é só meu, mas que o dispositivo da maternidade estabelecido em nossa sociedade me impõe simplesmente por eu ter um útero.

O que vou escrever, sobre o que e como irei abordar estão implicados diretamente nesta trajetória feminina e feminista. Minhas referências dialogam com a teoria decolonial, com as africanidades, com o pensamento freireano e outras influências que apresentarei no decorrer de nossos encontros. Do mesmo modo, carrego comigo minhas amigas e amigos, minhas alunas e alunos que passaram e passam na minha vida, minhas companheiras e companheiros que lutam e sonham comigo com uma sociedade outra, a do “Bem Viver”. Sem esquecer que será recheada pela minha relação com Artur e Kelly.

Artur, Silvia e Kelly, em recordação de abril de 2019. “Família significa amor entre os diferentes”, disse a professora na postagem. Foto: Arquivo pessoal

Quando eu era criança eu queria ser a neguinha do Pajeú: a negra da propaganda do óleo que dançava em cima de uma frigideira. Apesar de não saber por que aquela personagem, que parecia tanto comigo e dançava naquele lugar, me remetia à ideia de que lugar de mulher negra era na cozinha e eu me identificava com aquele corpo.

Que lugar estava destinado a mim, uma menina negra, moradora da periferia de Fortaleza, filha de uma família de retirantes vinda do interior do Ceará? Sujeitas subalternas não são reconhecidas sequer como seres humanos. Quem sou e minha trajetória estão marcadas pela teimosia em ocupar e/ou disputar lugares que a colonialidade (do poder, do saber e do ser) insiste em dizer que não posso estar. Pois esta produz hierarquias raciais, culturais, epistemológicas, sexuais e de gênero definindo até quem pode ou não falar.

“Ainda hoje as pessoas se admiram da minha formação acadêmica ou tentam me desqualificar”

Ainda hoje as pessoas se admiram da minha formação acadêmica ou tentam me desqualificar ao não citarem num cartaz ou na apresentação de uma palestra o “Dra” ou quando uma aluna diz: “quem é você para dizer que meu trabalho precisa ser mais qualificado?”. Sou a professora, doutora e orientadora. Sou a pessoa que, contrariando a conjuntura, furou o bloqueio eurocêntrico da universidade. Por que será que em pleno século XXI esse tipo de constrangimento e violência ainda acontece? E por que não ocupar esse lugar que é de privilégio? E por que não colocar também a minha formação acadêmica? E por que não falar e escrever a partir do meu lugar?

Como bem aponta Anzaldúa, falamos em uma língua que eles não querem aprender, a língua das loucas, subaternizadas e destituídas de privilégios. Por isso, nós, mulheres negras, temos dificuldade de poder falar e principalmente escrever sobre nós, nossos saberes, nossas dores e nossa visão de mundo. Neste sentido, concordo com as feministas decoloniais que é fundamental para nós a fala, o poder dizer, valorizar a nossa escrita, jogar fora as regras e a forma acadêmica, evocar nossas realidades pessoais e sociais, escrever com o corpo todo colocando as tripas no papel!

Silvia Maria Vieira dos Santos: Historiadora e Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação Brasileira – UFC. Professora da Rede Estadual e técnica pedagógica da equipe de Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade da CODIN/Seduc.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here