Roberto Muniz Dias: Bem-vindEs todEs

A língua passa por um processo de mudança que objetiva contemplar um gênero neutro. O fenômeno acontece após grupos reivindicarem que a nossa linguagem passe a contemplar as diversas formas de ser e viver as identidades de gênero

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Por Roberto Muniz Dias, colunista do Mídia Queer

A mudança da língua é algo dinâmico, resultante de operações complexas de seus usuários. A importação e incorporação de novas palavras são fenômenos interessantes e relevantes dentro desse processo de adaptação da língua aos novos inputs.

Nesse sentido, a língua portuguesa tem-se permitido beber de novas fontes, revelando sua vocação para o acolhimento de novas palavras (expressões, gírias etc). Esse processo é mais comum fora dos meios acadêmicos (que se utilizam da norma culta) e se desenrola no usuário comum da língua.

Então, estaria a Língua Portuguesa realmente preparada para mudanças na sua morfossintaxe? Se pudéssemos atribuir à língua, à guisa do que acontece com as variações de gênero e identidades, mudanças que observamos dentro da sociedade e que acompanham movimentos sociais de reivindicações identitárias; estaria esta língua dinâmica e receptiva, pronta para uma transformação na sua estrutura mais característica de um gênero masculino atribuído a todos os gêneros? Seria a Língua Portuguesa realmente machista? Poderia ser inclusiva?

Todas estas questões vieram à tona depois de muitas discussões e de experiências dentro de sala de aula, conversa com professores e alunos e escritores de livros de ficção e de pesquisadores em linguística. A questão está centrada nesta mudança observada entre os jovens operadores da língua, em contato contínua com a linguagem da internet muito afeita a incorporações de outras línguas e de gírias criadas dentro de suas tribos e pela urgência das mudanças tecnológicas. Por estas razões, observa-se que o cenário destas mudanças não são tão passageiras ou oriundas de “modas”, que mudam e desaparecem com o tempo. Trata-se de mudanças profundas de incorporações vivas e que operam suas bases em processos dinâmicos de apropriação e uso da língua como elemento mutante de comunicação.

A urgência dessa mudança da língua no sentido de contemplar um gênero neutro, resulta de fenômenos pós-estruturalistas, pós-coloniais e movimentos pós-feminismos. Não há nada antropologicamente comprovado, senão por alguns usuários da língua que defendem que a língua deve contemplar as diversas formas de ser e viver as identidades de gênero. Talvez ainda haja uma relutante resistência dentro da academia, mesmo utilizando-se da teoria queer, que em resumo, questiona os papeis de gênero e os binarismos, ratificando o gênero como uma construção social. Sendo assim, porque não a língua ser um instrumento destas mudanças dentro de uma estrutura de comunicação mais inclusiva?

Assim, surgem novas formas de enxergar a língua como um instrumento vivo, como ferramenta desta inclusão que se observa dentro de sua sociedade. Esta “Linguagem inclusiva” começa a ser utilizada dentro de empresas e associações e interlocutores que se apropriam desta nova forma de comunicação por entender que a língua oficial pode funcionar como um elemento exclusivo que não contempla as diferenças. O assunto é polêmico, nem de longe oficial. Diversas instituições e empresas estão utilizando de maneira informal, entre suas correspondências e usuários (principalmente pelos e-mails eletrônicos e especialmente nas redes sociais).

Uma revista de circulação nacional destacou, em sua capa, este fenômeno e atrelou a uma mudança comportamental de reconhecimento de outros gêneros, de novos afetos e devido a outras orientações sexuais. Este periódico trabalhou com índices de pesquisas e entrevistas com jovens que se autodeclaram fluidos em seus gêneros e como desenvolvem suas orientações sexuais. Não à toa, esse fenômeno de mudança na língua está relacionado com uma questão de representatividade de um público que cobra da Língua materna, uma adaptação aos gêneros diversos e uma atenção às pessoas que não reconhecem os dois gêneros.

A “novilíngua” das redes e a onipresença nas escolas do tema da vez podem não durar mais que alguns verões, mas o que elas sinalizam veio para ficar. Não é exagero afirmar que uma importante mudança geracional está em curso. Dados de um levantamento da agência de publicidade J. Walter Thompson mostram que 76% dos jovens brasileiros não dão importância à orientação sexual dos outros e 82% concordam que as pessoas devem explorar mais a própria sexualidade. A J. Walter Thompson ouviu 1 500 pessoas entre 12 e 19 anos no Brasil, nos Estados Unidos e na Inglaterra. Outra pesquisa, coordenada pela psicóloga Luciana Mutti, em Porto Alegre, revelou que 20% dos adolescentes entrevistados já haviam tido relações com pessoas de ambos os sexos. A pesquisa foi feita com 400 jovens de 13 a 18 anos na capital gaúcha.[1]

No entanto, nem sempre a Língua está pronta ou tão aberta para estas mudanças. Segundo alguns Linguistas e professores de Português, há explicações mais do que claras, que desvendam esses mistérios da nossa língua e derrubam as teorias de uma língua machista.

É isso que aponta o linguista Joaquim Mattoso Câmara Jr., em pesquisas sobre linguagem desenvolvidas desde a década de 1940. No artigo “Considerações sobre o gênero em português”, um dos principais trabalhos produzidos no Brasil sobre o tema, o linguista explica que o gênero feminino é, em português, uma particularização do masculino. Essa particularização é feita pela terminação “a”, que é diferente da terminação neutra “o”. [2]

A questão é que algumas línguas possuem o seu neutro de forma clara, repercutindo em situações em que o gênero não se manifesta, a não ser que deliberadamente se expresse o gênero. Por exemplo, a língua Inglesa expressa seu gênero neutro pelo pronome IT (animais e coisas), e há mudanças recentes até mesmo na expressão de um pronome neutro para os gêneros como o Ze (Identifica-se com o they, mas se utiliza como o HE/SHE). Portanto, estas determinações não parecem algo pontual ou local, mas é decorrente de línguas que operam sobre as variações sobre o que é feminino e masculino. O alemão também identifica um pronome neutro, bem como outras línguas.

O sueco, assim como o dinamarquês, tinha historicamente três gêneros (como o então alemão moderno), contando com masculino, feminino e neutro, entretanto, ao longo de seu processo de dialetação durante a Idade Média, perdeu o gênero neutro. Na língua sueca há dois pronomes similares ao pronome em inglês “it”: “den” e “det” que são de gêneros neutros no sentido de não se referirem às categorias de masculino ou feminino, no entanto, raramente são utilizados para se referir a seres humanos (PETTERSSON, 1996).[3]

Este pequeno texto se propõe a defender de forma parcial a questão da adaptação a movimentos sociais identitários ou reivindicatórios de uma linguagem mais inclusiva. No entanto, esses movimentos de mudança da língua refletem mudanças intrínsecas aos seus usuários e da percepção de uma violência simbólica cuja linguagem pode gerar problemas em diversos sentidos. O nosso português deriva do latim e este tinha um gênero neutro (“U”), que por questões de adaptações fonéticas, transformou-se no “O”, e por que não o “A”? A defesa é de que o “O” acabou acumulando o neutro e o “A” ou feminino seria uma particularidade do neutro. Enfim, a língua pode ser uma expressão genuína de seus usuários, e pode ser sim um instrumento reivindicatório de mudanças que se registram no seu seio social. Se ela se adapta e acompanha a dinamicidade da sociedade (pensemos na mudança ortográfica recente, fruto de exigências na uniformidade de uma língua lusófona; nesse sentido, a quem interessaria estas mudanças?), por que não por um capricho (ironia) dos movimentos sociais?

Importante atualização sobre a demanda das pessoas com deficiência visual, pois está se adotando os sinais “X” e “@” como fonemas alternativos para a marcação dos artigos “A” e “O” que definem os gêneros. Mas segundo estas pessoas, os aplicativos e os programas de leituras de textos não conseguem produzir um som adequado no momento da leitura destes textos processados. Portanto, pede-se que se utilize o artigo “E” nestas mudanças inclusivas, como por exemplos: Todos, por TodEs. Neste ano, foi lançado o Manual Prático de Linguagem Inclusiva (vide notas de rodapé), que foi escrito por André Fischer,  Fundador e Diretor do Festival MixBrasil de Cultura da Diversidade.

Fiquemos atentos para a dinamicidade da nossa língua!

[1] https://veja.abril.com.br/ciencia/amigues-para-sempre/

[2] https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/elx-els-todxs-na-lingua-portuguesa-sem-genero-neutro-apenas-masculino-e-feminino-bm8jcy7i87jfe7geodpop4cbg/

[3] https://cientistasfeministas.wordpress.com/2017/10/10/brasileirxs-e-brasileires-um-ponto-de-vista-da-linguistica-sobre-genero-neutro/

Roberto Muniz Dias é professor, romancista, dramaturgo, mestre em Literatura pela UNB (Universidade de Brasília) e doutorando em literatura pela UFPI. Formado em Letras Português/Inglês e Direito pela UESPI (Universidade Estadual do Piauí). Foi premiado em 2009, pela Fundação Monsenhor Chaves com menção honrosa pela obra “Adeus Aleto”. Foi premiado pela FCP (Fundação cultural do Pará) com o texto teatral As divinas mãos de Adam, como melhor texto teatral de 2015, e o Troféu em Cena 2018 pelo texto teatral A bacia de Proust. Ainda recebeu os prêmios 16º Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade de 2016; 3º Prêmio educando para o respeito à diversidade sexual e Prêmio beijo livre direitos humanos 2017, todos na área de Educação. Recentemente, foi premiado com o troféu Os melhores do teatro Piauiense(2019) pela peça Dorothy.

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