Quem são as pretas que pariram nossa história?

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Capa de cordel Tia Simoa. Foto: Reprodução.
Por Silvia Maria Vieira dos Santos, colunista Mídia Queer

No período em que se celebra o dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha e o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra (25 de julho), uma parte da população cearense recebe com indignação a divulgação de um estudo que supostamente releva nossa “origem” nórdica-vinking.

Meu interesse inicial era escrever sobre o dia 25 de julho, contudo a repercussão dessa notícia falaciosa e os debates que a sucederam me provocaram a refletir sobre a participação das mulheres negras em nosso processo identitário e na história do Ceará.

Durante muito tempo a população negra cearense ficou invisível nas produções historiográficas e jornalísticas. Em nome da miscigenação afirmava-se que não existiam negros no estado. Outras justificativas foram apresentadas, tais como: a primazia na abolição da escravatura e a pequena porcentagem de negros devido a província ter-se dedicado mais à pecuária do que à indústria açucareira durante o período do sistema escravista. Assim, não se levava em consideração que os africanos e seus descendentes trabalhavam numa maior diversidade de setores da economia, inclusive como libertos. Só recentemente é que alguns historiadores como Funes e Ribard (2008), Ferreira Sobrinho (2011), Ratts (2001), entre outros, vêm desconstruindo a versão de que o Ceará teve pouca mão de obra negra.

A invisibilidade da presença e contribuição das culturas africanas no Ceará tem uma estreita relação entre a negação da importância cultural africana e o racismo.  Negar nossa ancestralidade em detrimento de um mito fundador ou de uma fantasiosa origem nórdica é uma tentativa esquizofrênica de uma releitura do projeto de eugenia brasileiro.

Em contraposição a essas visões comumente veiculadas, quero propor que resgatemos nossas histórias, contadas muitas vezes no terreiro de casa, na beira da calçada, embaixo de uma árvore ou ao redor de uma fogueira. Protagonizadas pelas mulheres de nossa família ou por comadres agregadas; negras como Dona Maria, Tia Esperança e Tia Simoa, entre tantas outras.

Para isso pergunto: Quem foi a preta que te pariu? Quem eram as nossas ancestrais? O que fizeram e como viveram? Quais as lutas que travaram? Porque não as vemos representadas na historiografia cearense?

Um exemplo de história de mulher negra, forte, articulada e mobilizadora que ficou silenciado mas que devemos rememorar todos os dias é o da Preta Tia Simoa. Esta mulher negra liberta lutou ao lado do seu companheiro, José Luis Napoleão, no movimento popular conhecido como “Greve dos Jangadeiros” em 27, 30 e 31 de janeiro de 1881. Esta ação bradava que “no Ceará não se embarcam mais escravizados” e impulsionou os rumos da abolição da escravidão na província três anos mais tarde.

Tia Simoa também representa as mulheres negras das religiões de matriz africana, como afirma a historiadora Karla Alves ao identificar em um texto memorialista a referência a esta liderança como uma “Preta Velha”. Esta que dominava os códigos de convivência e a tradição da sua prática religiosa mobilizou a população local em apoio à greve impedindo a ação policial naquele momento.

Tia Simoa, como também Tia Ciata e tantas outas tias e mães negras, pretas velhas, usaram a sua ancestralidade, religiosidade, oralidade e corporeidade, elementos da cosmovisão africana, para lutarem pela liberdade e resistirem às opressões advindas do racismo.

Estas experiências de resistência e de solidariedade do povo negro cearense foram construídas historicamente através de sua sociabilidade concretizada nas festas de reis, nas cirandas, nas irmandades e até nas fugas que realizavam.

Desvelar a história da Preta Tia Simoa, tão pouco conhecida e pesquisada em nosso estado, é reconhecer nossa origem africana, é desmantelar essa colonialidade que deslegitima nossas epistemologias e nos desumaniza cotidianamente.

Peço a benção a todas as pretas velhas e tias que fizeram e ainda fazem a história do Ceará, na certeza que estas vozes não serão mais silenciadas pois nos representam e nos fortalecem na construção e na produção de uma historiografia negra cearense.

Silvia Maria Vieira dos Santos: Historiadora e Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação Brasileira – UFC. Professora da Rede Estadual e técnica pedagógica da equipe de Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade da CODIN/Seduc.

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