Que posição é reservada para as mulheres negras na prateleira do amor?

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Foto: Alonso Reys (in Unsplash.com)
Por Silvia Maria Vieira, colunista Mídia Queer

Nas últimas semanas, acompanhei pelo noticiário o caso do menino Miguel, que caiu do nono andar de um prédio no Recife. Ao observar as matérias jornalísticas, via sempre a mãe, Mirtes Souza, aparecendo sozinha e me perguntava? Esse menino tinha pai? Qual a sua participação por justiça nesse caso?

Mirtes, como a maioria das mulheres, é mais uma “chefe” de família que carrega os marcadores identitários da grande parcela socioeconômica da sociedade brasileira, assim como eu e muitas de vocês que estão lendo. A questão que quero problematizar é por que é assim?

Qual a relação entre racismo, gênero, afetividade e solidão das mulheres negras? Penso que não conseguirei esgotar esse assunto neste único texto.

Sabemos que nosso país é marcado por um racismo estrutural fruto de uma colonialidade do poder que hierarquiza os grupos étnicos produzindo historicamente lugares de privilégios para brancas e brancos e de subalternidades para negras e negros.  Do mesmo modo, estamos afogados pelo sexismo que legitima e ordena a nossa condição identitária e sexual, bem como nossas relações.

A solidão das mulheres negras é uma realidade. Desde a infância, quando vamos para escola e somos invisibilizadas ou estereotipadas, passando pela adolescência, juventude e até na fase adulta, quando somos vistas como corpos hipersexualidados ou como amas de leite – domésticas por essência.

Concordo com Ana Cláudia Lemos Pacheco[1] ao dizer que o “racismo e o sexismo são ideologias e práticas socioculturais, que regulam as preferências afetivas das pessoas, ganhando materialidade no corpo racializado e sexualizado”.

Estamos naufragadas no dispositivo amoroso, a tal forma de amar que subjetiva e subjuga as mulheres, dentro desse processo de construção do gênero e das relações desiguais entre o feminino e o masculino.

Desse modo, uso a categoria “Prateleira do Amor”, criada pela pesquisadora Valeska Zanello, para explicar nossa subjetivação e desempoderamento no campo das relações afetivas. Na “Prateleira do Amor”, é colocado em posição elevada o ideal estético branco, o cabelo liso, a magreza e a juventude.

Pense! Em que prateleira estariam as mulheres negras, gordas e velhas? Quem nunca ouviu a frase horrenda de que existem mulheres pra casar e outras para gozar? O imaginário racista e sexista estrutura e ordena um conjunto de práticas corporais racializadas vividas no gênero, na sexualidade, no trabalho, na afetividade e em outros lugares sociais que nos é destinado. Ou seja, as mulheres negras estariam fora do “mercado afetivo” e naturalizadas no “mercado sexual”. Exemplos disso são aquelas propostas de relacionamentos extraconjugais, não assumidos, não resolvidos, velados e escondidos, descontínuos e voláteis, tanto por parte de brancos como negros, ativistas ou não.

Diante disso, como não sentirmos preteridas em diversas ocasiões quando não queremos apenas sexo? E quando estamos num relacionamento estável, como não nos submetermos e nem suportarmos situações de abuso, violência e descaso? Como desmantelar essa prateleira e desconstruir essa visão da mulher negra marcada pelo racismo e pelo machismo?

Penso que a primeira coisa é entender que nossas relações e preferências afetivas e amorosas não são apenas individuais e isentas das relações sociais e dos marcadores de raça, gênero e classe. A segunda é nosso ativismo, apesar de já ter ouvido que quanto mais estudamos mais solitárias ficamos.

É urgente que juntas possamos problematizar essas questões que insistem em dizer que estão no campo do privado, mas que se escancaram para todo mundo ver. Como diz Bell Hooks, o feminismo negro (aqui acrescento o ativismo das mulheres de cor) desafia essas hierarquias sociais, e, porque não dizer também afetivas, na tentativa de modificar e ressignificar as várias experiências das mulheres negras.

[1] Pacheco, Ana Cláudia Lemos. Mulher negra: afetividade e solidão. Salvador : ÉDUFBA, 2013.

Silvia Maria Vieira dos Santos: Historiadora e Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação Brasileira – UFC. Professora da Rede Estadual e técnica pedagógica da equipe de Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade da CODIN/Seduc.

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