O que é o “cis-hétero-bolsonarismo”?

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Crédito: Cristiano Siqueira

Rick Afonso-Rocha, doutoranda e mestra pelo na Universidade Estadual de Santa Cruz (PPGL/UESC), publicou no último dia 12 artigo na versão digital do jornal Le Monde Diplomatique Brasil em que apresenta a formulação “cis-hétero-bolsonarismo”.

O conceito fala sobre singularidades sexuais e de gênero do governo Bolsonaro. A reflexão, colocada pela pesquisadora bixa como “ainda provisória”, reflete sobre o lugar das políticas sexo-gendradas nas configurações autoritárias da extrema direita, metonimizadas no que chamam hoje de bolsonarismo.

Rick explica que o cis-hétero-bolsonarismo se estrutura num complexo sistema com variadas dimensões. “Por isso, quando falo em uma lógica bolsonarista, aponto para a forma de pensamento que visa a condicionar as operações intelectuais de modo a produzir a negação de qualquer diferença, reduzindo a existência outra à ameaça biológica. Ainda, poderíamos pôr em jogo uma gramática, semântica, ética, política, estética e metafísica bolsonaristas”, destaca.

A estudiosa acrescenta que o cis-hétero-bolsonarismo se aproxima do nazismo, do fascismo, do integralismo “e de tantos outros fenômenos autoritários e populistas, como também há elementos que o distanciam, inclusive por serem contraditórios, pelo menos, numa leitura mais tradicional. Todavia, isso não é aleatório ou circunstancial”.

Para se sustentar enquanto projeto, “busca conduzir, ampliar e intensificar o ódio, mobilizando identificações latentes, a fim de alimentar o fascismo cotidiano, tirando-o do armário”.

Algumas características do cis-hétero-bolsonarismo:

Traduz-se num mosaico de paisagens nazifascistas, uma corporalidade singular. É uma bricolagem contraditoriamente picotada. Não estranhemos suas mãos coladas na cabeça ou sua boca nas costas. Seu funcionamento sócio-político, portanto, se faz pela recursividade estrutural ao fascismo, em seu sentido mais amplo.

Eis o cis-hétero-bolsonarismo: contradições funcionais, configurações ditatoriais e uma boa pitada de ressentimento, que serve como mobilizador dos afetos da “classe média” (aporofobia). Isso acaba desencadeando um fenômeno que alguns analistas estão associando ao anti-intelectualismo, chave de leitura proposta por Jason Stanley em sua análise sobre o fascismo. Esse anti-intelectualismo teria como objetivo minar o conhecimento crítico, fato que, supostamente, facilitaria a “manipulação” das ditas massas, como parece defender Márcia Tiburi.

Sendo contra tudo, o cis-hétero-bolsonarismo se projeta como única saída e única chance de vitória na guerra imaginária que ele reatualiza. Nessa confluência polimorfa e aberta, o assim chamado inimigo torna-se uma indistinção: nem homem e nem besta, nem humano e nem animal, nem morto e nem vivo. A consequência desse funcionamento é que a sua figura pode ser facilmente deslocada conforme os interesses ordinários das classes e grupos hegemônicos: hoje, os imigrantes; amanhã, os negros ou as bichas ou ambos. Isso não significa que o inimigo seja qualquer um. Há corporalidades mais fáceis de serem marcadas como alvos, visto que já habitam zonas de abjeção.

Pode até Bolsonaro deixar de ser bolsonarista, ainda assim o cis-hétero-bolsonarismo existirá como nebulosa político-ideológica. O sujeito empírico que ocupa a presidência serve como ponto de ancoragem do movimento autoritário. Antes dele, ensaiaram pontos subjetivos outros, a exemplo de Marcus Feliciano, Magno Malta, Silas Malafaia. Contudo, foi com Bolsonaro que teve condições de emergência e de hegemonia. Se não fosse ele, certamente, seria outro.

Bolsonaro serve como voz, corpo e imagem do cis-hétero-bolsonarismo. Por ele, o fascismo e o liberalismo mortífero, aquele sem maquiagem, conseguem se fazer presentes.

Com cis-hétero-bolsonarismo, busco sinalizar para uma transmutação daquilo que designei como cis-hétero-militarismo: formação histórica de significação da dissidência sexual e de gênero, mais ou menos delimitada a partir de 1930, com a confluência das ideias conservadoras à formação discursiva do anticomunismo no integralismo, resultando na produção sinonímica comunista = devasso moral.

Arrisco dizer que o combate a assim denominada ideologia de gênero é o operador central do cis-hétero-bolsonarismo. Embora muitos afirmem que essa centralidade se traduziria no anticomunismo ou no antipetismo, compreendo que o fantasma do inimigo sexo-gendrado é responsável, nesse funcionamento deimopolítico, por reatualizar tanto o anticomunismo quanto o antipetismo. Comunistas e petistas, que na gramática bolsonarista são sinônimos, atuariam pela dita ideologia de gênero.

O cis-hétero-bolsonarismo emerge num contexto mais amplo de tensões entre religiosos e os governos de esquerda latino-americanos. De certo modo, a luta contra o comunismo cede espaço para a luta contra a ideologia de gênero. Nesse sentido, o cis-hétero-bolsonarismo constitui reação paranoica a uma suposta emasculação social, visto que, nessa lógica, os movimentos progressistas estariam, simbolicamente, amputando o pênis do varão. Fenômeno que evoca a assunção de uma posição de combatente, um chamado à batalha, afinal a guerra santa seria uma realidade.

É no início do governo Lula que o cis-hétero-bolsonarismo começa a ensaiar sua emergência. Naquela época, gravitando em torno de algumas figuras pitorescas, a extrema direita reacionária ainda não provocava medo às “forças progressistas”.

Em minha hipótese, é entre 2004 e 2007 que o cis-hétero-bolsonarismo constrói sua massa corpórea. A partir de 2010, pelo que parece, já era inevitável, pois adentrava ao espectro de hegemonia da política nacional.

O fascismo, em sua nova configuração ne(cr)oliberal, saiu do armário. O inimigo a se combater, necessário à sua re-emergência, foi produzido com sucesso. Afinal, como alertou Foucault, com o desenvolvimento do neoliberalismo, a guerra tornou-se evidentemente uma forma de governo. A partir dessa chancela, os fascistas puderam afirmar sem medo que os LGBT+ significam uma ameaça real à família e à sociedade. Sendo um incômodo, apelam por sua contenção ou eliminação.

O cis-hétero-bolsonarismo serve à chancela e à legitimação do ódio que não ousava se dizer em público, mas que agora é vociferado, pois junta-se a outras vozes. Por isso, a voz é um fenômeno singular para o fascismo de bando ou tribalismo reacionário. É por ela que o sentimento de pertencimento se fortalece e a vergonha é destruída, mostrando ao fascista recalcado que há vozes como a dele. Vociferações do terror.

Portanto, na lógica bolsonarista, dizer “Brasil tem que deixar de ser país de maricas” significa que é preciso reforçar e equipar ainda mais os mecanismos de eliminação das vidas bichas.

Assim, tais enunciados se convertem em licença para matar (ainda mais) viados, sapatas, trans, travestis… Essa é a economia libidinal do cis-hétero-bolsonarismo, cada vez mais presente em nosso cotidiano.

Leia o texto completo AQUI!

AUTORIA: Rick Afonso-Rocha é uma bicha nordestina: doutoranda e mestra pelo PPGL: Linguagens e Representações, da Universidade Estadual de Santa Cruz (PPGL/UESC). Bolsista da FAPESB. Integrante do grupo de pesquisa “O Espaço Biográfico no Horizonte da Literatura Homoerótica” (GPBIOH), do Núcleo de Estudos Queer e Decoloniais da UFRPE (NuQueer) e do Grupo de Pesquisa Estudos Literários Contemporâneos: Fontes da Literatura de Jornal da UEFS. Colaboradora do Grupo de Estudos Discursivos em Arte e Design (NEDAD/UFPR), do Grupo de Estudos Discursivos da UESC (GED) e do blog Resista! Observatório de Resistências Plurais.

FONTE: Le Monde Diplomatique

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