Mário Felipe: O fascismo nosso de cada dia

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Johnny Depp em Sweeney Todd: o demônio barbeiro de Fleet Street. Foto: Reprodução.
Por Mário Felipe, colunista Mídia Queer

“Como fazer para não vir a ser fascista mesmo quando (sobretudo quando) se crê ser um militante revolucionário? Como desembaraçar nossos discursos e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como caçar o fascismo que se incrustou em nosso comportamento? […]” (FOUCAULT, Michel. Préface. In: Dits et écrits III (1976-1979), p. 133-136).

Nasci em uma década onde pouco se falava sobre política. Nos anos 1990, a política era assunto para gente mais velha, ou melhor dizendo, para as pessoas que se beneficiavam diretamente dela. Não que isso tenha mudado por completo, a política continua sendo o assunto principal para quem usufrui de suas benesses. Porém, o que mudou foi o interesse da sociedade brasileira em geral por esse assunto que antes parecia estar restrito a um estrato social específico.

Isso se deve, em grande medida, a mudanças na paisagem social contemporânea e aos esforços dos movimentos sociais, através da politização da esfera privada e de um entendimento de que problemas individuais, muitas vezes, são efeitos de problemas sociais históricos, resultantes de processos de silenciamento e exclusão por uma determinada ordem social.

É inegável, que hoje, a política está muito mais incorporada ao nosso dia a dia do que há alguns atrás, seja em sua dimensão institucional, seja em seu aspecto cotidiano. Nunca a política se aproximou tanto de nossas vidas a ponto de nos fazer romper laços sociais considerados mais sólidos, como são os laços familiares, bem como a levar em consideração uma determinada filiação político-partidária na hora de estabelecer um envolvimento emocional. Expomos, postamos, compartilhamos, denunciamos as violências do dia a dia que antes, talvez, passariam despercebidas ao nosso olhar. Essa mudança se deve também ao trabalho desempenhado pelos profissionais das ciências humanas que, com suas pesquisas e suas análises da vida social em tempo real têm contribuído enormemente para visibilização e denúncia de violências sociais históricas.

Como o capitalismo não deixa passar nada, antes empreendendo um trabalho de apropriação e esvaziamento do conteúdo político de determinados termos e posturas, para o bem o para o mal, as empresas também têm estado atentas a essas mudanças na sociedade, capacitando seus funcionários e modificando suas políticas internas a fim de adequar-se as demandas do seu tempo e assim manterem-se competitivas em um mercado pautado cada vez mais no imperativo do impacto social.

Hoje, uma empresa só se mantém competitiva se produzir isso que o mundo do marketing estratégico denomina de impacto social. E é, a partir do imperativo fomentado pelo universo empresarial e incorporado a nossa vida cotidiana, que nos transformamos em produtores de conteúdos nas redes a fim de gerar impactos subjetivos: como reconhecimento social, autovalidação, sentimento de pertença.

Com a emergência do bolsonarismo no Brasil e os absurdos institucionais e sociais desse governo, a esquerda, ou melhor os indivíduos que se identificam com essa nomeação e se anunciam ao mundo a partir dessa classificação, tem contribuído no processo de atualização do discurso binário e religioso que enxerga o lado de lá como a encarnação do mal ou da loucura e o lado de cá como a personificação do bem e da sensatez. Sem desconsiderar a crise governamental que a sociedade brasileira se encontra mergulhada, pretendo, nesse breve ensaio, apenas salientar a importância do debate micropolítico para repensar o nosso modo de fazer política.

Em um contexto político onde impera a associação da política a valores morais de bem e mal, nos autossabotamos, acabando por lançar ansiedades de origens diversas na figura de quem socialmente tem encarnado o Grande Mal. É inconteste para o segmento de esquerda do nosso país (incluindo, o autor desse texto) o desserviço que o presidente Jair Bolsonaro faz na condução do executivo federal, contudo isso não nos isenta como indivíduos éticos, de aprendermos a separar o que é da ordem do outro e o que é nosso. Digo isso por perceber que muitos de nós de esquerda por ansiarmos nos reconhecer como bons indivíduos, sujeitos políticos que estão do lado certo da história, “esquecem” de atentar para o ensinamento básico dos feminismos: o pessoal é político. Logo, não adianta nos escondermos por detrás de uma imagem pronta para ser usada de um indivíduo ideal de esquerda quando bem nos convier, enquanto estamos atualizando na intimidade dos nossos lares muitas das violências que nos empenhamos em combater.

Será que nos transformamos em sujeitos que exercem a ética política apenas sob os holofotes das redes sociais? Será que nossas postagens e o reconhecimento que obtemos delas, somado ao desejo de sermos reconhecidos como boas pessoas, é dos elementos que nos move nesse processo de edição de si alienada e alienante? Se não existe uma essência por trás dos nossos atos sociais e se somos pura edição e performance, em que medida esse jogo performático não implica em apenas um processo de narcisificação de si? Em que medida um certo discurso político vem sendo apropriado pelas pessoas para que elas se sintam melhores em suas incoerências e ambivalências? Quando não sou objeto de uma audiência, quem sou eu? Ou, só me faço nesse jogo?

Falamos muito de personalidade autoritária, de racismo, de relacionamentos tóxicos, de empoderamento, o que é um grande avanço para uma sociedade que diz democrática. Contudo, parece que estamos esquecendo que, nosso esforço em falar sobre esses assuntos também implica em um esforço de nos reconhecer como sujeitos individuais que atualizam essas violências em nossas relações cotidianas.

Parece, muitas vezes, que ao falar dessas questões sempre estamos visando um outro que ocupe o lugar de perpetrador dessas violências. Quando agimos assim estamos esquecendo que fomos socializados em uma cultura machista, misógina, racista, autoritária e tóxica. Pensando, a partir da psicanálise, acredito que todos nós somos tóxicos em alguma medida com o outro e é nisso que consiste a nossa constituição como sujeito diante desse outro.

Nossas relações sociais são marcadas por rupturas, mal-entendidos. Causamos dor ao outro “sem querer”. Isso faz parte também da nossa compreensão acerca do nosso processo de castração. A individualização pressupõe sucessivos cortes que iniciam a partir de um corte inaugural e simbólico, o do cordão que nos mantém unidos ao corpo materno. Esse processo de constituição do sujeito me faz lembrar na metáfora do porco espinho formulada por Freud. “Isolado e sentindo frio, se encosta nos outros porcos espinhos e eles se espetam, se machucam e se afastam. Voltam a sentir frio e a se encostar novamente até acharem o ajuste ideal para a distância e a proximidade do outro”. [1]

A cultura é dinâmica e está passível de atualizações. Contudo, esse é um trabalho que exige tempo, conscientização e humildade. Sem um exercício de autoanálise e de reconhecimento onde eu, como indivíduo singular, atualizo essas violências históricas que, publicamente, me empenho em combater, continuaremos sendo sujeitos políticos que exercem sua prática política se escondendo por trás das grandes questões.

[1] Disponível em: https://www.hojeemdia.com.br/opini%C3%A3o/blogs/opini%C3%A3o-1.363900/freud-e-o-desafio-do-porco-espinho-1.686151. Acesso no dia 31 de agosto de 2020.

Mário Felipe

É doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará e Psicanalista em formação pelo Corpo Freudiano – sessão Fortaleza.

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