Gean Gonçalves: Eu cancelo, tu cancelas, nós cancelamos…

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Imagem: iStock
Gean Gonçalves, colunista do Mídia Queer

Não é uma novidade para os mais assíduos nos espaços de debate da internet e nas redes sociais a ideia de ‘cancelamento’. Recentemente, esse comportamento se tornou conteúdo de artigos de opinião e tema principal de revistas de alta circulação no país. Tudo isso, é claro, após episódios bem emblemáticos para criticar certas personalidades intelectuais, artísticas e midiáticas. Tomo como exemplo recentes os casos envolvendo a filósofa feminista Djamila Ribeiro e a antropóloga e professora Lilia Schwarcz.

Acredito que é importante observar esse comportamento massivo das redes sociais com muita cautela. São verdadeiros incêndios digitais, com alta complexidade. Ao meu ver, nesse tipo de ação massiva é preciso separar quem efetua críticas pertinentes das práticas que querem atingir e restringir o outro. Todavia, quero chamar atenção primeiramente para uma possível raiz, muito efetiva, da intitulada “cultura do cancelamento”.

Pessoalmente, o cancelamento me parece um novo nome para uma técnica muito comum do movimento LGBTI nacional e internacional – o boicote. O boicote foi e ainda é muito utilizado em situações em que empresas e marcas se posicionam com intolerância e práticas de preconceito com a comunidade LGBTI. A saída política é a recusa intencional em comprar certo produto ou frequentar determinado estabelecimento. É uma forma de protesto contra determinada indústria ou empresa. Já tivemos boicotes contra a Barilla, a Riachuelo, e mais recentemente, contra a Smart Fit. Em alguns casos, as empresas se reposicionaram mais aliadas às pessoas LGBTI.

Boicotes, não são exclusivos do movimento LGBTI, mas entre nós eles são realizados com uma linguagem própria, que envolve humor, desenvoltura e vivacidade. Essa atividade lembra ainda o lobby, ação de pressão de grupos para exercer determinada influência ou alcance, para difundir alguma campanha. Ação comum junto ao poder público e membros do Legislativo.

Até aqui. Falo de práticas que compreendo, muito humildemente, como bem-vindas ao reconhecimento de injustiças sociais. Devidamente elaboradas para enfrentar relações e agentes de poder. Enfrentava-se, nessas ocasiões, o poder público e as instituições de mercado. No entanto, o ‘cancelamento’ diz mais do enfrentamento a posturas individuais.

Parece-me que nos perdemos em algum momento no desenrolar dessas técnicas. Sem retirar a validade das críticas, muitas reações negativas do ‘cancelamento’ parecem ser tomadas por um certo espírito do nosso tempo: o discurso de ódio, de forte rejeição ao outro, autoritário e fascista. É colocar a mão em um vespeiro dizer isso: porém, será que estamos menos propensos a aceitar as falhas do outro? Cancelar não estaria muito próximo de um desejo de obliterar, apagar, eliminar?

Com isso, não quero dizer que não seja fundamental dar visibilidade aos problemas estruturais e as questões dos grupos mais alijados de nossa sociedade, mas convidar o outro a perceber tais questões, sinalizar o erro. Assinalar que o erro deve ser denunciado como erro. Para que o comportamento ou o que foi dito não se repita. Para que o agente seja tomado pela crítica e busque a reparação, a transformação. Não a posição de negação do problema e o famoso “desculpas se por acaso tiver ofendido alguém”.

Se o ‘cancelamento’ é um ataque à reputação. Frequentemente, ele tem sido aplicado em personalidades para ameaçar seus empregos e meios de subsistência. É também frequentemente praticado como um linchamento digital. Podem dizer que desejo ‘passar pano’ para essas pessoas, mas as vejo muitas vezes como possíveis aliados. Nós os elevamos a posição de divindades descontruídas. Quando tudo é um processo que demanda diálogo, troca e muitas, muitas etapas de aprendizado sobre a experiência do outro. Afinal, não é possível nascer completamente seco, quando seu habitat é o fundo do mar.

Daí me pergunto também se não é uma arma, que estamos a construir, que pode ser cada vez mais utilizada contra nós mesmos, o elo mais fraco, pessoas negras, LGBTI e mulheres que ousam emitir suas considerações no debate público.

Se há algo que apreendemos de 2013 para cá, é que nossas estratégias podem ser tomadas por grupos conservadores, por aqueles que querem privar nossos direitos.

Que saibamos conduzir nossos lobbies, boicotes, cancelamentos com sabedoria…

Por fim, como Beyoncé é Beyoncé, pauta muito importante para as bichas, recomendo dois textos de grande sabedoria que expressam tudo o que acredito no caso do erro de Lilia Schawrtz, para dar um pitaco nesse último ocorrido, sigo as palavras de Fabiana Moraes, no UOL, e Rosane Borges, na Folha de S. Paulo, respectivamente.

Gean Gonçalves: Jornalista, professor e doutorando em Comunicação na USP. Foi repórter da imprensa LGBT – na revista Junior e no portal MixBrasil. Acredita em uma teoria bixa/queer para a comunicação social.

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