Émerson Maranhão: Você sabe o que é ‘fazer a Lya Luft’?

O mega talentoso jornalista Émerson Maranhão, que há 15 anos produz colunas semanais voltadas para o público LGBTI+, estreia no Mídia Queer. No seu primeiro texto na nova casa, que está recheado de irreverência e criticidade (ou seja, no seu melhor estilo), o colunista questiona o apoio dado a Bolsonaro por parcela da comunidade. Confira!

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– Você viu o post que Fulaninho acaba de publicar?
A pergunta da amiga chegou pelo aplicativo de mensagens, no meio da tarde tumultuada.
– Ainda não. O dia está puxado hoje! Algo urgente?
– Não, na verdade não. Só mais um conhecido fazendo a ‘Lya Luft’?
– Sério? Caraleo!
– Pois é, quem diria, né? Pelo menos Fulaninho já se arrependeu!
O diálogo acima não é fictício. Deu-se ontem mesmo e registra a reação, entre dois amigos a uma declaração pública de arrependimento de um homem gay que votou em Bolsonaro na última eleição. Desde que a escritora Lya Luft, 81, revelou em entrevista à Folha de S. Paulo ter votado no atual ocupante da Presidência da República e se arrependido, seu nome virou gíria. Ainda que não seja das mais populares escritoras desta segunda década do século 21. Mas sempre tem aquelas que adoram impressionar e pagar de intelectual, não é mesmo?
Assim como “Fazer a Glenn” significa “dar uma de louca” (graças ao filme “Atração Fatal”), “Fazer a Egípcia” significa “Virar de lado e ignorar o interlocutor” (vide as pinturas nas tumbas dos faraós) e “Fazer a Íntima de Oliveira” é “fingir que é amiga de alguém com quem nunca trocou uma palavra” (alguém lembra da Isis de Oliveira anunciando noivado com o George Clooney?) , “Fazer a Lya Luft” é se declarar arrependido de ter ajudado Jair Messias a subir a rampa do Palácio do Planalto. Geralmente, a declaração vem acompanhada de frases como “Só queria um outro Brasil”, “Estava cansada de tudo que está aí” e “Não tinha outra opção!”.
Fenômeno curioso de todo, a eleição do pai de 01, 02 e 03 é mais surpreendente ainda quando se faz um recorte de seu eleitorado LGBT. Sim, os eleitores gays de Bolsonaro existem e são em maior número do que a racionalidade mínima permitiria supor. Por falar nisso, também nesta semana, a drag queen paulista Kaká di Polly, por exemplo, fez a Lya Luft. Já o sapateiro de celebridades Fernando Pires registrou uma selfie ostentando, orgulhoso, a imagem do presidente em sua máscara anti-Covid.
Mas voltando ao que interessa a esta coluna, o que leva uma pessoa com orientação sexual ou identidade de gênero diversa eleger um candidato abertamente homo-transfóbico? Será a total incapacidade de senso de pertença? Será a recusa em se perceber integrante de determinado grupo? Será a negação inconsciente de sua natureza? Ou será uma tentativa de autopunição por seus desejos?
Dentro desse arco temático, impossível não lembrar de Sérgio Camargo, o atual presidente da Fundação Palmares, e um dos darlings do presidente. Apesar de ser negro, Camargo classifica o movimento negro como “escória maldita”, nega que exista racismo no Brasil e diz que os filhos de escravos foram beneficiados pela escravidão, entre outras sandices do gênero.
Aos LGBTs que votaram em Bolsonaro não cabe o benefício da ignorância. Havemos de convir que Jair Messias nunca enganou a ninguém. Nem tentou. Sua ojeriza a homossexuais é pública e notória. Mais. É portada, qual medalha, com orgulho! “Prefiro ter um filho bandido a um filho gay”, bradava, sem enrubescer.
Ainda assim, houve gays que preferiram votar num candidato homofóbico que em qualquer outro. Estes certamente dirão que seu “voto não pode ser reduzido a sua orientação sexual ou identidade de gênero”, ou, ainda, que “os interesses do País estão acima de quem se leva para baixo dos lençóis”. Um discurso tocante, sem dúvida!
Tanto que desemboca no momento em que, aos poucos, eles decidem fazer a Lya Luft. O arrependimento só se deu – e só se dá – quando o País está totalmente à deriva na maior crise sanitária mundial deste século; quando o discurso anticorrupção cai junto com o lavajatista Sergio Moro; quando a polícia e a justiça fecham o cerco ao Queiroz e ao 01; quando não há mais como tapar os olhos para o golpe alimentado nos subterrâneos dia após dia. Ou seja, quando não há mais como sustentar a farsa do Mito.
Mas, curiosamente o arrependimento não se deu quando Bolsonaro fez das piadas homofóbicas o repertório de seus gracejos; quando promoveu uma verdadeira “caça às bruxas”, censurando editais de cinema e séries de TV com temática LGBT (XYZ), quando mandou cancelar espetáculos teatrais e exposições de arte, quando derrubou campanhas publicitárias que mostravam pluralidade. Ou seja, quando usou a máquina federal para tentar invisibilizar e sufocar representações da diversidade sexual e de gênero.
Tudo em nome da família e do tal “conservadorismo da maioria da população brasileira”, como ele diz. Ainda que não se registre contradição alguma com o fato de o mesmo presidente que se vale desse discurso está no terceiro casamento e ter dito a uma jornalista que usava o auxílio-moradia para “comer gente”. Haja conservadorismo!
Sim, são seletivas as razões de quem hoje faz a Lya Luft, como devem ter sido as que levaram ao voto em Bolsonaro. Mas, sem dúvida, essa seletividade revela muito sobre tais eleitores em 2018 e muito sobre os tais arrependidos de agora. Sigamos atentos – e juntos!

Na TV

Em tempo, a cada capítulo de “Fina Estampa”, que é reprisada pela TV Globo, aumenta o desserviço que a tal novela faz para a pauta LGBT (XYZ). Sem falar nas ações que propagam machismo e sexismo cena após cena. É escandaloso que uma trama com tantas arbitrariedades e um discurso que transborda preconceitos seja reexibida em pleno 2020, ainda mais em horário nobre. E olhe que nem citei a tibieza de sua dramaturgia, que ignora qualquer possibilidade de verossimilhança e se escora em situações que subestimam qualquer um com capacidade mínima de sinapse.

Estreia

Estreia sempre é estreia. Dá frio na barriga, taquicardia, suor frio. Sem falar naquele branco que ameaça a memória nos segundos que antecedem o abrir das cortinas. But, it’s show time! Here we go!
Vida longa ao Mídia Queer!!!

ÉMERSON MARANHÃO: Jornalista, roteirista e diretor de cinema. Durante 15 anos, redigiu e editou a Cena G, coluna voltada para o público LGBTQ+ no Jornal O Povo. Estudou Narrativas Transmidiáticas na Universidade de Tallinn (Estônia). Em reconhecimento à sua militância, o jornalista foi homenageado no 6º For Rainbow em 2012.

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