Émerson Maranhão: Na corda bamba, entre a delícia e a desgraça

Espremidos entre a “Síndrome do Bom Mocismo” e a “Cultura do Cancelamento”, gays e lésbicas se esforçam para sobreviver, com graça, aos tensionamentos decorrentes da heteronormatividade e da “Ditadura da Representação”

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O ano é 2020. E como fosse pouca toda a distopia que nos cerca, ainda somos obrigados a nos equilibrar em corda bamba, sem rede de proteção. Recorro à metáfora circense para representar o tensionamento, quase invisível, a que pessoas gays e lésbicas são submetidas cotidianamente, em nome da adequação a uma tal normalidade. Tensionamento este que, muitas vezes, tem sua origem na própria comunidade LG, e que se alicerça em duas forças que correm paralelas, mas ambas igualmente perversas.

A primeira delas é o que costumo chamar de “Síndrome do Bom Mocismo”. Depois de décadas sendo oficialmente marginalizados, homens e mulheres homossexuais finalmente ensaiam uma possibilidade de aceitação social, do reconhecimento pleno de seus direitos. Ensaiam, reforço.

No entanto, é falsa esta ideia de inclusão, uma vez que ela passa pela adequação à heteronormatividade. E é a necessidade deste padrão supostamente “heteronormativo” que é absorvida e exercida quase que inconscientemente por gays e lésbicas.

O primeiro dos sintomas desta Síndrome é a domesticação de nossos desejos. Qualquer imagem ou comportamento que remeta ao potencial erótico de nossos corpos há de ser solenemente combatida. Se um anúncio publicitário insinua a silhueta de um pênis marcado sob a calça jeans, automaticamente tem sua vulgaridade ressaltada. “Coisa de site pornô. Qual a necessidade disso?”, reclamam uns e outros.

Se o Ministério Público questiona uma emissora de TV por censurar cenas de sexo gay em um reality show cuja principal atração são as cenas de sexo, o internauta – gay! – indigna-se. “O mundo acabando e os viados querem ver transa! No momento em que o brasileiro está passando isso é realmente importante?”, questiona, sem perceber que a pergunta que interessa é outra. Por que apenas as cenas de sexo gay são censuradas, enquanto as dos casais hétero abundam, ainda que em plena pandemia? O “momento brasileiro” difere entre gays e héteros?

Também decorrem desta Síndrome o incômodo com as demonstrações públicas de afeto de pares homoafetivos, sempre com o mesmo argumento de lugares públicos não são feitos para isso, enquanto os pares héteros se fartam de beijos e carícias, sem causar estranhamento a ninguém.

Não deixa de ser significativo que a marginalização do desejo homossexual seja o primeiro alvo desta estratégia. Ainda que óbvio, é importante reafirmar que o interesse sexual pelo corpo de um homem ou uma mulher é determinante na identificação de uma pessoa como homo ou heterossexual. Este é um elemento definidor. Se eu associo essa pulsão sexual à pornografia, ao desvio, à vulgaridade, eu condeno de pronto esse desejo. E o que seria de nós sem o desejo sexual? A primeira coisa é que deixaríamos de ser homossexuais. É uma questão identitária de primeira ordem. E este é o ponto!

Por mais que saibamos que há outras camadas na construção da sexualidade e da homossexualidade, a primeira delas é para onde pulsa o meu desejo. Quem me excita. O que me excita. Se eu passo a defender que minha excitação não é legítima porque destoa de padrões e convenções A ou B, se criminalizo ou culpabilizo a imagem que move meu desejo, obviamente estou criminalizando este desejo.

E este é um discurso falso moralista por definição, uma vez que os desejos héteros predominantes não recebem tratamento igual. Se e quando raramente o recebem é sob olhar condescendente, para dizer o mínimo.

Ainda são muitos os outros sintomas da “Síndrome do Bom Mocismo”, que acomete a tantos de nós, e poderíamos passar horas falando deles. Mas, em síntese, uma possível definição para esta síndrome é a necessidade de agradar aos que nos repudiam em busca de uma aceitação que, no fundo, é inalcançável nestes termos em que é posta.

A outra força que suporta o tensionamento é a “Cultura do Cancelamento”. Um dos mais populares fenômenos dos últimos anos, essa cultura se apoia na pressão para moldar o mundo às crenças e certezas de quem a tenta impor. Promove um ambiente que, na verdade, combate a diversidade e despreza as possibilidades de interlocução.

Em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo nesta semana, Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento, assim a define:

“Na cultura do cancelamento não há a ideia de ‘divergência’. Há a pretensão da verdade. (…) O cancelamento não tem a ver com justiça, mas com poder. Em regra, é feito para causar dano moral e profissional ao divergente. (…) Difícil não perceber como tudo isto é uma reedição da antiga lógica da “patrulha”. Ela apenas ganhou escala. E não é feita pelo Estado ou pela direção do partido, mas pela multidão. A multidão patrulheira”.

Falando dessa maneira, parece algo distante de nossa realidade. Infelizmente não o é. Está mais perto do que o desejável e do que é aceitável numa sociedade diversa. Assim como citei exemplos recentes de comportamentos da força anterior, poderia fazer o mesmo em relação a esta. E casos não faltam. Todos se escorando no frágil argumento que “tal situação não me representa”. E aqui, somos apresentados a uma das facetas da “Cultura do Cancelamento”, a “Ditadura da Representação”.

Por esta cartilha, meu interesse é movido apenas e exclusivamente por lugares onde me sinta representado e da maneira como quero sê-lo. Em assim não sendo, cancela-se o tal lugar, por não atender às minhas expectativas específicas.

Como o nobre leitor já deve estar imaginando, sim, estão a ameaçar de cancelamento este espaço virtual privilegiado, porque determinada pauta não representa A, certa abordagem não representa B ou tal coluna não representa C.

Em vez de falar destas ameaças opto por apontar seu oposto. Num site em que uma das missões é justamente unir diversos e celebrar a diversidade, festejo estar representado nas discussões colocadas por meus colegas Dediane Souza, Kaio Lemos, Roberto Muniz Dias, Gean Gonçalves, Ari Areia, Mães Pela Diversidade e Silvia Maria Vieira, entre tantos outros, tão diferentes de mim, com interesses distintos e realidades idem.

Não é por ser um homem gay, cisgênero, de classe média, que tenho meu universo restrito a estas questões, que não possa me interessar pelo ponto de vista de uma mulher negra travesti como Dedi, nem pelo pensamento de um homem trans, como Kaio, e por aí vai.

Pelo contrário, quanto mais souber do outro, melhor. Quanto mais amplo for meu universo, mais longe enxergarei. Quanto maior for meu repertório, mais compreenderei o mundo. Só assim conseguiremos atravessar a corda bamba que cito no começo deste texto com “uma graça cujo segredo nem eu mesmo sei, entre a delícia e a desgraça, entre o monstruoso e o sublime”, como canta o mestre Caetano.

E aos que pretendem ter como única interlocução o espelho, e como padrão de norma a sociedade que nos oprime, meus mais sinceros sentimentos.

ÉMERSON MARANHÃO: Jornalista, roteirista e diretor de cinema. Durante 15 anos, redigiu e editou a Cena G, coluna voltada para o público LGBTQ+ no Jornal O Povo. Estudou Narrativas Transmidiáticas na Universidade de Tallinn (Estônia). Em reconhecimento à sua militância, o jornalista foi homenageado no 6º For Rainbow em 2012.

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