Elevando o tom na estratégia de inclusão LGBT no mercado de trabalho

O colunista Italo Alves aprofunda o debate sobre inserção produtiva, trazendo propostas para combater as desigualdades impostas às pessoas de Identidades sexuais não-hegemônicas

1992
Imagem: FUP
Por Italo Alves, colunista Mídia Queer

“Você acha que eu vou convidar representantes dos RHs das empresas para um evento e pedir que contratem travestis? Impossível!”. Foi isso o que eu ouvi de um ex-secretário do Trabalho e Desenvolvimento Social do Estado do Ceará, em uma reunião onde apresentei um plano integrado de promoção de ambientes de trabalho inclusivos e da empregabilidade de pessoas LGBTI+ no mercado de trabalho cearense, que desenvolvi durante 4 anos de pesquisa e trabalho em ONGs e no setor privado.

O Brasil não é somente o país que mais mata pessoas LGBTI no mundo, mas também protagoniza diversas outras agressões sistemáticas contra esses corpos que barram seu acesso à cidadania, através da negação de uma educação de qualidade, de um serviço de saúde humanizado e de direitos humanos como o emprego e a renda.

Aqui, o movimento social se organizou fortemente contra a discriminação no ambiente de trabalho durante a ditadura, mas esse debate ficou em segundo plano nas últimas décadas, uma vez que o histórico de assassinatos contra pessoas LGBTI+ no Brasil indica a existência de um plano de extermínio de nossos corpos, patrocinado inclusive pelo Estado e amparado pelo setor reacionário na política brasileira, onde a defesa do direito de viver da pessoa LGBTI+ se tornou a principal pauta do movimento até hoje. Até porque nada antecede o direito à vida.

Foto: Agência Universitária de Notícias da USP

Uma pesquisa do Ibope, em 1998, relatou que 60% dos brasileiros não contratariam um homossexual. Os tempos mudaram um pouco de lá pra cá. Uma outra pesquisa, realizada pelo Pew Research Center, em 2014, revelou que 60% dos brasileiros acredita que a sociedade deve aceitar a homossexualidade como algo normal. Na prática, esse desejo de “normalidade de tratamento” passa a ser questionado uma vez que pessoas LGBTI+ ocupam espaços de poder e a competir pelas posições anteriormente monopolizadas pelas pessoas heterossexuais e cisgênero no Brasil.

Uma pesquisa realizada pela Santo Caos, em 2017, mostra que 33% das empresas brasileiras não contratariam LGBTIs para cargos de chefia. O Vagas.com – um dos maiores portais de contratação profissional no Brasil – fez um levantamento sobre quais eram as vagas que mais eram preenchidas por pessoas LGBTI, sendo elas: cabeleireiro, atendente de loja (moda feminina), maquiador, comissário de bordo e estilista. Entre as menos ocupadas por pessoas LGBTI+ estavam: gerente financeiro, diretor de produtos, presidente de empresas, analista de sistemas e analista de crédito. Isso é revoltante, uma vez que nossos espaços na sociedade parecem ser pré-determinados por estereótipos que limitam o potencial e as oportunidades dos nossos seres. Não há nada de errado em trabalhar nessas áreas, mas nossos destinos não podem estar limitados a elas. Lugar de LGBTI+ deve ser aonde ele ou ela quiser. Logo, a resistência que o secretário de Estado mencionado acima demonstrou não é isolada, mas me assusta que esse tipo de visão permaneça na gestão pública pautada no trabalhismo.

Hoje, temos dados ainda que subnotificados sobre as variantes de discriminação LGBTIfóbica no Brasil. Na medida em que relatórios sobre tais crimes foram divulgados no país, foi possível entender que um dos agravantes dessas agressões é a dependência financeira. Uma LGBTI que tenha acesso a emprego e renda terá mais chances de poder se retirar de um ambiente familiar ou comunitário violento e se auto-proteger. Portanto, a inclusão do mercado de trabalho também deve ser vista como uma forma de prevenir crimes de LGBTIfobia. Contudo, o acesso ao emprego não necessariamente isenta essa pessoa de sofrer LGBTIfobia no mercado de trabalho.

A pesquisa da Santo Caos apresenta dados alarmantes sobre essas violências:

  • 41% das pessoas LGBTI+ no mercado de trabalho formal afirmam terem sofrido discriminação por sua orientação sexual ou identidade de gênero no ambiente de trabalho;
  • 61% dos funcionários LGBTI+ no Brasil optam por esconder a sexualidade de colegas e gestores;
  • 90% de travestis estão se prostituindo por não terem conseguido emprego (mesmo com bons currículos).

O caso da discriminação contra pessoas trans e travestis apresenta uma falha no próprio sistema da nossa democracia de direitos ao demonstrar claramente que, por conta da discriminação, mesmo em um ambiente com ampla disponibilidade de vagas de emprego, essas pessoas ainda não conseguiriam acesso a tais vagas. Essa é uma realidade que precisa mudar. Transfobia é crime desde 2019 no Brasil e a discriminação no mercado de trabalho está inclusa na decisão do STF que proibiu tal prática.  A falta de acesso ao emprego digno também mata!

Só que simplesmente o acesso ao emprego não resolve o problema. Se o Brasil quiser realmente incluir as pessoas LGBTI+ de forma correta, será necessário desenvolver uma cultura inclusiva e emancipadora nas empresas, onde as lideranças assumirão o compromisso transversal de suas pessoas jurídicas com a inclusão em seus discursos e posicionamentos, criarão políticas de não-discriminação, canais de denúncia internos, programas de conscientização e educação pela diversidade, treinarão seus gestores em diversidade e inclusão, criarão de grupos de afinidade para debater e definir ações afirmativas para a causa na empresa, revisarão processos de recrutamento retirando viés discriminatório, contratarão mais pessoas LGBTI+ e garantirão equidade salarial e promoção de carreiras. Uma empresa inclusiva faz esse tipo de coisa, e não somente cria produtos e serviços com a bandeira LGBTI+ e personalidades da causa no Brasil, como tá na moda por aí. É preciso questionar até mesmo se os profissionais de marketing que estão criando produtos e serviços pra nossa comunidade nessas empresas são LGBTI+.

Algumas iniciativas surgiram na sociedade civil para tentar mudar esse problema. O Fórum das Empresas e Direitos LGBTI+ reúne mais de 80 empresas que assinaram uma carta-compromisso, pela promoção da empregabilidade e dignidade LGBTI+ e que seguem muitas das recomendações acima. O Fórum se reúne anualmente e as empresas apresentam o status de como estão as suas políticas de inclusão e dados sobre funcionários LGBTI. Essas empresas também estão, gradualmente, patrocinando ONGs e iniciativas voltadas para a promoção dos direitos humanos no Brasil, apesar de que, na prática, essas oportunidades foquem majoritariamente nos Estados do Sudeste e Sul do país.

Vale ressaltar que, no mundo, a aceleração do processo de inclusão de grupos “minorizados” no mercado de trabalho se deu a partir de um convencimento da academia, com grande contribuição dos estudos das ciências humanas e exatas com relação aos benefícios econômicos da valorização da diversidade. O Instituto Ethos e a Revista Exame publicaram um relatório recente sobre as 52 empresas que mais investem no Brasil:

  • 90% viu melhoria no clima organizacional;
  • 86% viu aumento de produtividade em todos os funcionários;
  • 90% foi capaz de atrair e melhores talentos, e
  • 77% foi capaz de desenvolver pesquisas, produtos e serviços melhores.

O movimento social tem sido um qualificador e fiscalizador dessas narrativas, lapidando o discurso e mostrando que a inclusão é a coisa certa a ser feita pelas empresas, ao mesmo tempo que entendendo seus interesses específicos. As maiores transformações sociais do nosso país aconteceram quando fomos capazes de criar consenso entre todos os setores (sociedade, público e privado) em torno de uma causa comum, cada um respeitando seus interesses e deveres.

Outras iniciativas brasileiras que precisam ser mencionadas são a Transempregos – uma ONG criada pela militante e empresária Márcia Rocha, quem criou um banco de dados de vagas em empresas para pessoas trans no Brasil e que tem ajudado a recrutar pessoas para essas vagas, ao mesmo tempo que conscientizando as lideranças das empresas pela diversidade.

Há também a TODXS, sendo essa uma iniciativa de minha co-autoria. A TODXS é uma organização sem fins lucrativos que combate a LGBTIfobia institucional e promove o protagonismo LGBTI no Brasil. Um dos projetos que eu criei na ONG foi a TODXS Consultoria  – uma frente formada por consultores diversos no país todo que ajudam na transformação cultural de empresas e do setor público pela diversidade e inclusão real de pessoas LGBTI+ no mercado de trabalho. Nós realizamos muitas das intervenções operacionais mencionadas acima nas empresas que trabalham conosco. Alguns de nossos clientes são: Facebook, Google, 99, Bain & Company, J. P. Morgan, Whirlpool, entre muitos outros. A TODXS Consultoria já impactou diretamente dezenas de milhares de funcionários dessas empresas no Brasil e na América Latina.

Vídeo de parceria entre a TODXS e a 99 após intervenção do projeto TODXS Consultoria na empresa

Por último, mas não menos importante, devemos mencionar o programa Transcidadania desenvolvido pela gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT), em São Paulo, o qual resgatou e capacitou centenas de pessoas trans marginalizadas pela sociedade, possibilitando a ativação econômica através de vagas em empresas, o empreendedorismo, e o melhor de tudo, o resgate de sua autoestima. Essa iniciativa exemplar precisa ser qualificada e expandida. Devemos olhar com carinho pra ela, pois nenhuma das iniciativas descritas acima combaterão o problema estrutural da discriminação no Brasil se não forem acompanhadas de projetos de inclusão de pessoas LGBTI+ na educação e gestão pública.

No Brasil, 82% das pessoas trans não finalizam o Ensino Fundamental II. Sete em cada dez estudantes LGBTI alegam terem sofrido agressões físicas, psicológicas e verbais nas escolas. O bullying LGBTIfóbico está contribuindo para a evasão escolar e para o suicídio.

Portanto, como falar de inclusão no mercado de trabalho de uma população cujas novas gerações estão sendo exterminadas e marginalizadas ainda no seu processo educativo? Somente com uma educação de qualidade e que promova a diversidade como um valor da nossa identidade brasileira é que teremos uma verdadeira revolução social inclusiva no nosso país. Só que isso não deve travar ações imediatas. O desemprego também acontece agora e as pessoas LGBTI+ estão sofrendo com a pobreza e falta de renda e dignidade hoje. Precisamos lutar paralelamente aos esforços de longo prazo para garantir que teremos mais pessoas conscientes da necessidade de programas como o Transcidadania, na gestão pública, e pessoas LGBTI+ que alcancem igualdade de oportunidades para que consigam competir por vagas em empregos em qualquer área que quiserem.

Todo o meu trabalho na TODXS e em outras organizações, que promovem a inclusão no mercado de trabalho, pode até causar algum avanço imediato, mas ele não é sustentável se não defendermos um modelo educacional democrático que valorize a diversidade e a inclusão, que combata a violência contra a população LGBTI ainda na sua infância e adolescência. Foi essa uma das razões que me trouxeram à política. Se a inclusão no mercado de trabalho é a minha prioridade número 1 na militância, a educação inclusiva é a minha prioridade zero. Isso porque acredito que há um limite para a mudança que podemos proporcionar envolvendo a atual geração de adultos, mas o futuro só existirá se a gente o construir.

A educação e a independência financeira são as áreas onde eu acredito que posso contribuir mais fortemente, somando-me às múltiplas iniciativas de outros companheiros e companheiras militantes em áreas diversas. Hoje, temos o privilégio de desfrutar dos avanços e direitos que muitas pessoas LGBTI+ lá atrás sonharam em ter e que morreram sem poder vivenciá-los. Nós militantes estamos nessa luta e sabemos que talvez não viveremos para ver o avanço chegar durante nosso curto tempo de vida no planeta, mas contemplamos e trabalhamos por esse futuro mesmo assim. O Brasil verdadeiramente inclusivo é possível e ele ainda depende de nós. Todos e todas podem e devem contribuir.

Ítalo Alves: Cofundador da startup social LGBT TODXS, coordenador regional da Aliança Nacional LGBTI, membro do comitê estratégico do Movimento Acredito e um dos fundadores do Global Shapers Fortaleza – coletivo de jovens ativistas vinculado ao Fórum Econômico Mundial.

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