Dispositivo materno: quem cuida de nós?

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“Nossa Senhora”, a mãe do “filho de Deus” – Uma das maiores representações do dispositivo materno. Ilustração: Reprodução da Internet
Por Silvia Maria Vieira, colunista Mídia Queer

Ser mãe é padecer no paraíso; Quem pariu Mateus que balance; Quantos filhos você tem? Nascemos pra sermos mães; Tenho medo de não ser uma boa mãe; Ser mãe é nunca mais poder dormir. Essas e outras pérolas costumo escutar cotidianamente e acredito que as mães que estão lendo também.

Conforme apontei no texto anterior estas são algumas impressões sobre a experiência da maternidade e da maternagem que compartilho com você e que me acompanham através do dialogo com algumas autoras feministas e hoje, nesta escrita em especial, com Valeska Zanello.

Quero problematizar como o chamado “dispositivo materno” invisibiliza nossas potencialidades dentro do espaço público e como isso nos adoece. Do mesmo modo, nos ajudar a entender o que é ser uma mãe, negra e trabalhadora dentro do capitalismo, que se retroalimenta por este dispositivo numa perspectiva de colonialidade de gênero.

Para iniciar nosso debate quero contar um fato que aconteceu comigo. Participando de uma entrevista para uma função específica na educação, perguntaram-me três vezes se eu teria como me dedicar integralmente ao serviço, se daria conta de viajar por exemplo, pelo fato de ser mãe. Logo aquilo me incomodou e pensei, se eu fosse pai será que me fariam essa mesma pergunta? Pelo fato de ser mãe minha capacidade de articulação e formação tinham sido reduzidas? Será que se esvaiu no meu leite? Não aguentei e perguntei se não haviam naquele espaço mães de filhos pequenos. Percebi uma certa surpresa na minha pergunta porque eu era a entrevistada, mas logo o assunto mudou de foco e acabei ficando no cargo.

Conversando com minha amiga Kassia Mota, mãe que também é trabalhadora da educação, mas do nível superior, ela também relatava as dificuldades, dadas as características do trabalho intelectual, do compromissos de tempo integral, da produtividade em pesquisa e de relações academicamente competitivas, que, de certa forma, restringem e direcionam a participação das mulheres neste contexto de pandemia, onde o ambiente doméstico com as crianças se confunde com a sala de aula. Objetivando problematizar estas questões é que surge o Projeto Mama África, coordenado por esta professora da UFCG e que podemos aprofundar num outro contexto.

De acordo com Zanello (2018), a consolidação do capitalismo no sec. XVIII foi fundamental para a distribuição desigual dos papeis de homens e mulheres, reservando o espaço público para o homem e o privado para a mulher. Como se o trabalho intelectual ficasse destinado ao masculino e o de cuidar fosse reservado a nós. Neste sentido há uma construção do que a autora chama de “dispositivo materno”.

Este conceito naturaliza o cuidado como função exclusiva das mulheres em decorrência da construção ideológica entre a procriação e maternagem, bem como seus desdobramentos como as tarefas domésticas.

É fato que simplesmente por nascermos com um útero somos consideradas cuidadoras por essência e as tecnologias de gênero, tais como as propagandas, as novelas, músicas e a própria religião, nos colonializam.

Somos subjetivadas no heterocentramento (ou a heterossexualidade como centro) e interpeladas a sempre priorizar os outros em detrimento de nós mesmas.

A produção deste ideal de maternidade e a confusão com a maternagem (cuidar) gera sentimentos ambivalentes como a rejeição, a culpa e o adoecimento, questões que poucas mulheres têm coragem de dizer. O desejo de ser mãe não é natural, ou seja, um devir. A felicidade de uma mulher não está diretamente proporcional ao fato de procriar. Precisamos descolonizar nossos afetos.

Maternar é um trabalho não pago e/ou desvalorizado. Quantas profissões do cuidado são marcadas pelo feminino e por isso mais exploradas, com menores salários?

Ao fazer o recorte de raça, gênero e classe, percebo que são as mulheres negras, que sempre trabalharam, as mais prejudicadas nessa condição de maternar, porque, além de a maioria cuidar dos filhos das outras mulheres, ao chegar em casa ainda cuidam dos seus também e dos afazeres domésticos. Desse modo, pergunto: quem cuida de nós?

Nesse sentido, posso dizer que somos todas mães solteiras nessa sociedade sexista onde cabe a nós o fardo de cuidarmos sozinhas de nossos filhos, sobrinhos, mães, pais, avós, tios e tias. Não, não podemos ficar elogiando ou destacando o fato de um pai cuidar de seu filho. Precisamos é pensar que esta cena deveria ser uma regra, uma ação, ai sim, naturalizada do ser humano, que é capaz de cuidar independente do gênero.

Silvia Maria Vieira dos Santos: Historiadora e Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação Brasileira – UFC. Professora da Rede Estadual e técnica pedagógica da equipe de Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade da CODIN/Seduc.

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