Dediane Souza: O que roubam das travestis?

Ao marginalizar e ao submeter as travestis a toda ordem de desigualdade e opressão, o que o CIS-tema rouba destas pessoas? Este questionamento direto é feito por nossa colunista

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Dandara dos Santos foi uma travesti torturada e assassinada em fevereiro de 2017. Com agressão gravada, o caso ganhou repercussão mundial. Foto: Arquivo pessoal
Por Dediane Souza, colunista Mídia Queer

Nessa minha escrita, quero conversar e questionar com você, caro leitor: o que as pessoas cisgêneras* roubam das travestis?

Desde o momento que afirmei a minha identidade enquanto travesti, escuto a seguinte frase: “Cuidado, Travesti rouba!” Essa afirmação sempre me incomodou e, muitas das vezes, chamei a atenção dos mesmos, perguntado: o que roubam das travestis?

Aqui vou tentar listar: o primeiro é o direito à vida, seguido pelo direito à família, ao convívio comunitário, à sociabilidade, aos afetos, à cultura e, por fim, os direitos tidos como universais, a exemplo da educação e da saúde. 

A negação ocorre por várias circunstâncias: a mais marcante delas é sua identidade de gênero e sua afirmação enquanto TRAVESTI. Essa afirmação “identidade travesti” já está atrelada às inúmeras violências e se constitui como um motivo principal.

Em um escrito de Janaína Dutra**, na Cartilha Brasil sem Homofobia (2004), ela faz uma comparação da vida das TRAVESTIS a uma ilha, só que, no lugar de água, as travestis são rodeadas por violências.

A existência dessa categoria identitária e política se faz necessária, visto que existimos em uma sociedade cisnormativa, que traz o confronto das normas do binarismo. Ser Travesti no Brasil é uma posição totalmente política.

A relação com o convívio social será de afirmação diária. Temos que nos afirmar em todos os momentos para mostrar que existem outras identidades possíveis. Só assim vamos perceber os olhares estranhos sobre os nossos corpos cotidianamente, pois não temos o direito à “passabilidade”, visto que temos que diariamente nos afirmar como T-R-A-V-E-S-T-I.

Temos que continuar a transformação social, criar narrativas que possibilitem a mudança dos imaginários estereotipados que roubam o direito de nossa existência.

A luta pelo o direito à vida e ao convívio cotidiano são narrativas comuns a todas nós TRAVESTIS: os relatos de violações e a dificuldade no acesso à cidadania plena são um coro de diversas vozes que foram e continuam sendo caladas pela violência e pela discriminação. Necessitamos urgentemente repensar a nossa estratégia de luta pela sobrevivência.

19ª Parada do Orgulho LGBT de SP. Foto: Paulo Pinto / Fotos Públicas

Agora, acredito que todas/os vocês compreendem que a sociedade brasileira tem uma dívida histórica com as travestis pelo seguinte fato: se algumas de nós cometem crimes, a exemplo de furtos (“roubo” sem emprego de violência), já somos sumariamente identificadas e julgadas enquanto categoria; o contrário não se vê: quando pessoas, que não são travestis, cometem o mesmo crime, não são identificadas enquanto uma identidade específica. 

Nunca escutei a seguinte afirmação na minha vida: “Cuidado, os gays roubam!”, “Cuidado, as Lésbicas roubam!” “Cuidado, os bissexuais roubam!”, “Cuidado, os heterossexuais roubam!” Até parece que esse crime é algo inerente à identidade TRAVESTI! Até quando vamos fortalecer esse estigma?

Dedico esse artigo à Thina “MacGyver” Rodrigues, com afeto!

*Cisgênero: Refere-se ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos, com o gênero atribuído ao nascer. Termo utilizado para descrever pessoas que não são transgênero (mulheres trans, travestis e homens trans). “Cis-” é um prefixo em latim que significa “no mesmo lado que” e, portanto, é oposto de “trans-” (Fonte: GLAAD).

**Janaína Dutra (Canindé, 1961 — Fortaleza, 2004), foi uma ativista social e reconhecida líder travesti do Movimento LGBT no Brasil. Formada em direito no estado do Ceará, foi a primeira portadora de carteira profissional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) onde atuava com a identidade feminina (Fonte: GRAB)

Dediane Souza: Jornalista, travesti, feminista, diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Ceará, ativista das pautas de direitos humanos e filiada à Rede Trans Brasil. Atualmente é Coordenadora da Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual da Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social – SDHDS de Fortaleza.

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