Ser Transmasculine com ou sem T: masculinidades positivas

É possível desconstruir nessa sociedade um corpo físico e conceitual e construir a partir de subjetividades?

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Fotos: Arquivo Pessoal
Por Kaio Lemos, colunista Mídia Queer

Vivenciamos um contexto em que as identidades transmasculinas resultam da demarcação de limites entre corpos e identidades nos processos subjetivos, sociais e culturais. O que significa ser um homem trans/transmasculine vivenciando a lógica de um corpo tecnológico de gênero e/ou fora dessa lógica? E o que nós, homens trans e transmasculines, dizemos sobre nossas identidades e corpos?

Não podemos desconsiderar o fato de que nossas mães e pais e/ou mães e mães e/ou pais e pais esperaram “uma menina” antes do nascimento. E muito menos que se prepararam para criar “essa menina”. Nesse sentido, nós, homens trans e transmasculines, somos/fomos criades como “meninas” e consequentemente sociabilizades como “mulheres” e assim permanecemos por toda uma vida lutando contra esse CIS-TEMA, esperando um dia libertar-nos dessas amarras. Tudo isso gera uma grande violência, um grande sofrimento e uma total estranheza.

Um dos maiores sofrimentos que enfrentamos e vivenciamos está relacionado ao machismo social e cultural que impera há muitos anos e que diz que para ser homem/masculine tem que ter “pau”; ‘pica”; “rola”; “pênis” e outros termos que existem para identificar genitálias masculinas na lógica cisgênera.

Percebemos que por conta da genitália biológica dita e lida como feminina  homens trans/transmasculines passaram a serem lides pela sociedade como “mulheres” e quando subvertem essa norma de gênero descontroem ou “fogem da malha” imposta, como bem pontua Judith Butler.

Mesmo subvertendo, a sociedade inicia todo um processo de diminuição, inferiorização e preconceito por conta da genitália biológica dita e lida “feminina” e em hipótese alguma reconhece nossas masculinidades. E aí começa todo um processo social de “correções desse corpo” e “negação dessas identidades como masculinas”.

Esse processo violento inicia logo ao nascer quando o pai e mãe, mãe e mãe ou pai e pai ao saberem que vão ter um filhe começam as especulações do sexo partindo sempre a genitália: “É menino!” ou “É menina!” e toda essa construção inicia através de uma ultrassonografia dando um resultado final por meio de uma leitura biológica: “Sim! É um menino!” ou “Sim! É uma menina!”.

É exatamente nesse momento que acaba a fase da fantasia e iniciam-se processos de “certezas” sociais e culturais dando largada à maratona: liga para os parentes, fala para os vizinhos, divulga nas redes sociais, começa a compra do enxoval. Também começa a maratona das cores: rosa, rosa, rosa, pink, pink, pink, vermelho, vermelho, vermelho, todas as cores que foram construídas culturalmente como femininas. O que fazer quando o caminho está traçado?

Juliana Coelho, em seu livro “Bastidores e Estreias: performers trans e boates gays “abalando’ a cidade”, diz: “Além desses caminhos, restariam apenas os descaminhos, desvios da rota do que é considerável saudável e natural para o humano.” Todas os comportamentos, performances e performatividades daquele ser passam a ser construídos, julgados e determinados.

Aquele corpo e aquela identidade são jogados numa rede de significados e a maior violência nisso tudo é que ele não pode decidir nada. As performances e performatividades construídas pela sociedade não são as mesmas performances e performatividades que virão a ser desconstruídas e construídas pelos mesmos/es. Entendendo aqui por performatividade o mesmo que descreve Juliana Coelho: “a repetição estilizada e fabricada de atos que produzem efeitos discursivos de verdade.”

Sobre esta questão, Judith Butler pontua que “a performatividade deve ser compreendida não como um ‘ato’ singular ou deliberado, mas, ao invés disso, como a prática reiterativa […] pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia”. Com isso, a problemática maior surge: é possível com toda tecnologia de gênero realizar as diversas transições, sejam elas tecnológicas ou não? É possível desconstruir nessa sociedade um corpo físico e conceitual e construir a partir de subjetividades? É possível transicionar sem ser violentade? A sociedade e a junta médica se posicionam a favor dessa desconstrução e construção? Existe harmonia entre subjetividade humana e a medicina?

Temos o desafio de pensar sobre tecnologias, construções e desconstruções de gênero, mesmo que de forma contrária às “normas de gênero” e sem levar muito em conta ação de protocolos. Ser um homem com ou sem T, de testosterona. Ser Transmasculine também com ou sem T. Ser um homem reconhecido e pertencido e ser transmasculine reconhecide e pertencide.

Neste texto foram citadas as seguintes referências:

– BUTLER, Judith (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

– COELHO, Juliana Frota da Justa. Bastidores e estreias: performers trans e boates gays “abalando” a cidade. Fortaleza, 2009.

– JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre a população transgênero: conceitos e termos. Brasília: Autor, 2012. 24p.: il. (algumas color.)  Protocolo EDA / DF 2012 nº 366

Kaio Lemos: Homem transativista dos direitos humanos, Consultor do Instituto de Raça, Igualdade e Direitos Humanos da ONU (AMÉRICA LATINA), Mestrando em Antropologia pela UFC UNILAB/CE, Especialista em Estudos de Gênero, Sexualidades e Direitos Humanos pela UFC/CE, Bacharel em Humanidades (UNILAB), Bacharel em Antropologia (UNILAB) e Presidente da ATRANSCE (Associação Transmasculina do Ceará).

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