Ser mãe negra: uma maternidade fora da caixa e descolonializada

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Silvia e o filho, Artur, há um ano. Foto: Arquivo Pessoal
Por Silvia Maria, colunista Mídia Queer

Há alguns dias ouvi em uma aula introdutória sobre feminismo decolonial que produzimos, dentro de uma captura colonial, um imaginário de família nuclear que, de fato, foi imposta para nós. Um padrão ocidentalizado que não se aplica à nossa realidade e por isso temos tanta dificuldade ao usarmos como categoria analítica, pois nosso modelo de família brasileira é o da mãe solteira e seus filhos.

Me senti tão representada nessa fala que decidi pesquisar mais para escrever esse texto. Já tem um tempo que falo e quero escrever sobre a experiência de ser uma mãe, negra e solteira nesta terra. Contudo, quanto mais estudo sobre esse fenômeno mais tenho dificuldade de escrever sem me angustiar e repensar minhas escolhas e relações cotidianas. Neste percurso obtive, além das teóricas que me acompanham, amigas que passam e que também pretendem problematizar acerca desta mesma experiência.

Dessa forma, apresento algumas impressões introdutórias sobre a experiência da maternidade e da maternagem que continuo na próxima edição.

A universalização da ideia de que todas as sociedades constituíram uma família nuclear patriarcal é um equívoco colonizador, de certa forma foi esta noção imposta que nos impediu do encontro com outras realidades africanas e indígenas.

Concordo com Oyèrónké Oyěwùmí que diz que não podemos problematizar gênero como um conceito universal, sendo imperativo levar em consideração a realidade das sociedades e  culturas locais (ditas subalternas) para entender a necessidade de teorizar as múltiplas formas de opressão, particularmente sobre as quais as desigualdades de raça, gênero e as desigualdades de classe são evidentes.

Ao criticar a noção de patriarcardo universal esta feminista nigeriana afirma que como fundamento da teoria feminista a família nuclear é uma família generificada por excelência, onde a mãe é essencialmente esposa. Neste entendimento não há espaço para  a noção de mãe independente de seus laços sexuais com um pai.

Dessa forma, ser mãe solteira, nesta perspectiva de patriarcado universalizante,  é um paradoxo. Também por esse motivo temos tanta dificuldade de entender outros arranjos familiares fora desse binarismo, como foi o caso Thammy, onde ser mãe ou pai identificam-se como categorias de gênero mais do que uma relação de filiação ou parentalidade.

Dentro da literatura feminista, a maternidade, que em muitas outras sociedades constitui a identidade dominante das mulheres, está subsumida a ser esposa. Porque mulher é um sinônimo de esposa, a procriação e a lactação na literatura de gênero (tradicional e feminista) são geralmente apresentadas como parte da divisão sexual do trabalho. (Oyěwùmí, 2004)

Ao estudar as famílias iorubanas do sudoeste da Nigéria e dialogando com outras teóricas, esta pesquisadora assegura que o princípio organizador das famílias iorubás não é o gênero mas a antiguidade baseada na idade. A maternidade é definida como uma relação de descendência, não como uma relação sexual com um homem.

Quando ouvi e li esse texto me remeti diretamente às religiões de matriz africana, pois dentro dos terreiros as crianças recebem uma educação difusa onde as/os mais velhos cuidam e ensinam independente do gênero, aliás todos olham as crianças como se fossem seus filhos biológicos (sejam as mães e os pais de santo, as ekedis, as/os egbomes, os ogâs, as cambones). Senti na pele essa relação ao levar meu filho ao terreiro, onde independente do gênero as pessoas exerciam esse papel cuidador e educador.

Penso que, dentro dessa perspectiva ancestral afro-brasileira das comunidades tradicionais, carregamos esses valores não-generificados onde a família estendida (essa na qual as tias, tios, madrinhas, padrinhos e agregados exercem essa maternagem) baseada nessa antiguidade se mantém para além dessa visão binária de família nuclear.

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