Enquanto é espaço para o desenvolvimento do neofascismo e discursos de ódio contra mulheres, LGBTI+ e pessoas negras, plataformas digitais seguem censurando e derrubando conteúdo afirmativo de grupo de ativistas. Relatório da organização Coding Rights, que fez um panorama das violências sofridas por mulheres lésbicas nas redes sociais, confirma essa tendência.
“Recentemente, no Facebook, sofri vários blocks nas fotos do meu casamento.” “Fui escrever ‘sapatona maravilhosa’ no comentário na foto de uma amiga e o Instagram perguntou se eu gostaria de escrever isso mesmo.” “Se você escreve sapatão, corre o risco de ser bloqueada.” Os relatos são de Camila Marins, mulher lésbica, negra e uma das editoras da Revista Brejeiras — publicação independente voltada para o público lésbico.
Em julho o Mídia Queer já tinha destacado que verbetes e expressões usados rotineiramente por streamers e produtores de conteúdo LGBTI+ eram vetados pelas diretrizes do Facebook Inc, que comanda as redes Instagram, WhatsApp e o próprio Facebook.
Agora, em “Visibilidade Sapatão nas Redes: entre violência e solidariedade”, as pesquisadoras da Coding Rights, Ivanilda Figueiredo e Joana Varon, dialogam com outras seis ativistas lésbicas brasileiras que usam a internet e as redes sociais como ferramenta de militância para construir uma análise sobre as violências — físicas e simbólicas, do silenciamento, das ofensas e das ameaças — vivenciadas por elas, relacionando-as com a sua presença no ambiente digital.
O objetivo das autoras era identificar que tipos de violências acontecem com essas mulheres que usam as plataformas digitais como instrumento para lidar com uma invisibilidade que é histórica e estruturante de uma sociedade que rejeita mulheres que não se adequam aos papéis que lhe são atribuídos na reprodução social.
Não é de hoje que termos que compunham os discursos de ataques a determinados coletivos sociais são incorporados às práticas discursivas, à luta e à resistência destas populações. Assim, sapatão e outros verbetes precisam ser analisados em seu contexto. Afinal, hoje já possível falar, por exemplo, de ordem política lésbica de resistência, que dá potência, visibiliza e promove a existência sapatão em diferentes tempos históricos.
“A visibilidade lésbica é uma forma de ação política utilizada há anos, mas depois de tanto tempo, ser vísivel ainda é arriscado, seja on-line ou off-line”, afirma Joana Varon, autora da pesquisa e fundadora da Coding Rights.
A dificuldade em postar determinados termos relacionados às mulheres lésbicas sem ter a página ou perfil bloqueados ou a postagem derrubada nas redes sociais é uma das formas de violência identificadas pelas ativistas no estudo. A própria Coding Rights já sofreu esse tipo de censura, quando um post publicado no Dia Nacional da Visibilidade Lésbica do ano passado foi derrubado do Instagram, conta Varon.
“A gente já experimentou isso quando publicou um gif com uma sapinha dançando com a palavra ‘sapatão’. Nossa sapinha voltou ao ar porque nós conhecemos o caminho dentro das próprias plataformas para reaver os conteúdos, mas até hoje não sabemos se foi uma denúncia ou se foi o próprio algoritmo que derrubou a postagem”, relata a pesquisadora.
Ela explica que as evidências de que a palavra ‘sapatão’ e outros conteúdos produzidos por mulheres lésbicas sofrem algum tipo de censura nas redes sociais surgem a partir de relatos e experiências compartilhadas pelas próprias ativistas, mas que faltam dados e transparência em relação a conteúdos removidos.
“Isso evidencia a necessidade de se ter mais transparência por parte das plataformas sobre os conteúdos removidos. Pela nossa experiência, temos conteúdos lésbicos que saíram do ar pelo uso da palavra ‘sapatão’, mas outras publicações que propagam discurso de ódio não, há ainda exemplos de ataques e invasões de páginas de ativistas lésbicas que acabam não sendo solucionados por essas plataformas”, afirma.
Varon explica que, para “hackear” o bloqueio da palavra, que historicamente foi usada de forma pejorativa contra mulheres lésbicas, mas tem sido apropriada e ressignificada pelo próprio movimento como forma de autoafirmação, as ativistas têm escrito sapatão trocando as letras finais por asteriscos.
Procurado pela imprensa, que vem repercutindo o estudo, o Facebook não vem respondendo aos questionamentos, assim como em julho, quando o Mídia Queer questionava os recorrentes bloqueios. Jornalistas questionam se há de fato algum filtro para a termo ‘sapatão’ no algoritmo das suas plataformas.
Além de apontarem para a censura por parte das próprias plataformas, as pesquisadoras identificaram, a partir das entrevistas, a invasão de contas e páginas de ativistas, o compartilhamento de discursos racistas, misóginos e LGBTfóbicos, ameaças de violência física, tentativas de intimidação de cunho sexual e a desinformação como formas de violência cometidas contra mulheres lésbicas nas redes.
O estudo afirma que redes de apoio e cuidados digitais relatam casos cada vez mais frequentes de ataques a perfis feministas e LGBTs, enquanto que as respostas das plataformas a essas denúncias nem sempre vêm, afirmam as pesquisadoras. Entre as entrevistadas, Michelle Seixas revelou que a Associação Brasileira de Lésbicas (ABL) teve sua conta invadida e, apesar das administradoras conseguirem reestabelecer o acesso, nunca souberam o que realmente aconteceu. Já Bruna Bastos, idealizadora da Sapatona Entendida e uma das articuladoras da Coletiva Brejo Salvador, perdeu a página do Facebook após ataques e não conseguiu obter assistência, nem resolver o problema.
As autoras do estudo afirmam que a própria construção dos algoritmos é muitas vezes carregada de machismo, lembrando que o Facebook tem nas suas origens uma plataforma desenvolvida pelo CEO da empresa, Mark Zuckerberg, chamado FaceMash: um jogo para classificar entre as colegas de faculdade quem era “bonita” e “atraente”, nos parâmetros dos outros colegas. Outro exemplo mais recente, citado no relatório, é o fato de que, somente no ano passado, o Google anunciou uma mudança em seu algoritmo para que a palavra lésbica deixasse de ser conectada automaticamente com conteúdos pornográficos na ferramenta de buscas.
Espaço de apoio
As autoras ressaltam, no entanto, que a internet e a redes sociais também são um espaço importante de amplificação das vozes de mulheres lésbicas, em contraposição a um apagamento histórico e estrutural de suas vivências, e que o ambiente digital também tem possibilitado a criação de redes de apoio mútuo entre essas mulheres.
Entre as entrevistadas da pesquisa está a arquiteta Mônica Benício, que conta como a internet gerou uma rede de solidariedade internacional dos movimentos lésbicos que a fizeram sentir-se incluída e acolhida após o assassinato de sua companheira, a vereadora Marielle Franco, em 2018.”Após o assassinato, quando eu vou para o Instagram, minha militância toma uma outra proporção, porque eu me torno uma mulher que reivindica o direito de querer descobrir quem matou sua esposa”, conta a arquiteta.
“Percebemos a rede tanto como um espaço de comunidade, solidariedade, reforço mútuo, quanto um espaço que proporciona experiências violentas, seja pelos ataques de ódio, seja pela violência imposta pela própria lógica do algoritmo”, afirma Varon.
Nesse sentido, a pesquisadora ressalta a importância de dois pontos que considera positivos do projeto de lei 2.630, conhecido como PL das Fake News: a obrigatoriedade de as plataformas serem mais transparentes e de instaurarem um devido processo extrajudicial para permitir que o usuário possa saber o que acontece quando faz uma denúncia ou tem uma publicação derrubada.
Mas, para Varon, as plataformas têm suas limitações: “É como diz a escritora americana Audre Lorde, mulher negra, lésbica e feminista, “as ferramentas do mestre nunca irão desmantelar a casa do mestre”. Essas ferramentas de redes sociais são de empresas que tem grandes monopólios. A gente pode temporariamente ganhar nesse jogo, ocupar e ter nossas comunidades ali, mas é importante viabilizar outras ferramentas que tenham outros valores. Hoje existem várias cyber feministas que estão desenvolvendo códigos e outras ferramentas e que têm o foco de trocar conhecimento para que tenhamos mais mulheres desenvolvedoras”, diz.
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Com informações do Jornal O Globo