Mário Felipe: A medicina como fetiche

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Foto: FreePik
Por Mário Felipe, colunista Mídia Queer

No contexto do novo Coronavírus, os médicos, e os profissionais da saúde, de uma maneira geral, assumiram um papel de centralidade no combate a pandemia. Alçados pela sociedade como verdadeiros heróis, os médicos e seu papel social ganharam os holofotes da mídia em um contexto marcado pela urgência de preservação da vida humana.

Historicamente, a medicina foi vista como um tipo de saber diretamente vinculado à verdade. Com o passar dos anos, sem perder essa posição de poder, o médico, como personificação desse saber, foi assumindo uma performance glamourizada, através de uma série de instituições sociais e de um conjunto de atos performativos que ritualizam a “essência” do ser médico. Um exemplo de como opera essa função perfomativa da medicina é quando pensamos no poder simbólico instituinte do jaleco. O jaleco veste o corpo do médico de significados, marcando-o, no interior de uma economia simbólica, como um corpo de valor. A imagem contemporânea que povoa o nosso imaginário vinculando a medicina a uma profissão de sucesso foi criada no momento em que essa profissão foi capturada por uma lógica mercantil, onde muitos jovens médicos passaram a personificar um estilo de vida, baseado no consumo de bens físicos e simbólicos como forma demarcar sua posição e prestígio social.

Durante a pandemia da COVID-19, assistimos a um processo de ressignificação de uma profissão que socialmente foi sendo associada ao prestígio e ao ganho financeiro rápido e imediato. De longe, o lugar de privilégio não deixou de existir, mas o que a pandemia fez foi escancarar o dia a dia não glamourizado de profissionais exaustos, de um sistema de saúde à beira do colapso e de um processo de ressignificação desses profissionais na cena pública, agora aparecendo como heróis, mas humanizados pelo sentimento de empatia e pela sensação de cansaço.

Embora seu uso seja carregado de boas intenções, desconfio que essa classificação – “heróis da saúde”- não seja uma simples expressão de reconhecimento do trabalho incansável de profissionais da saúde durante a pandemia. Para mim, por trás dela se esconde uma atitude romântica da sociedade com relação aos profissionais da saúde, de uma maneira geral, que, em última instância, oculta a precariedade de suas condições de trabalho e os seus limites físicos e psíquicos. Sabemos que, desde o processo de reestruturação do capitalismo, atribuir a um indivíduo o poder sobre alguma coisa configurou-se em uma estratégia neoliberal e, por que não dizer, perversa de responsabilizar um grupo de pessoas pelo destino da vida de outras pessoas. Sem investimentos públicos mínimos e uma ação coordenada de Enfermeiros, Técnicos, Psicólogos, Assistentes Sociais, dentre outros profissionais, o médico é apenas um jaleco branco no vazio, uma função, e não uma prática efetiva de intervenção na saúde individual e coletiva.

Mário Felipe

É doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará e Psicanalista em formação pelo Corpo Freudiano – sessão Fortaleza.

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