Por Kaio Lemos, colunista Mídia Queer
Gostaria de dialogar com vocês sobre roupas enquanto tecnologia de gênero. Enquanto capazes de criar gêneros por meio de discursos ou de práticas e experiências diárias. E como se dá essa criação de gêneros nas roupas? Bom, as roupas carregam códigos e não estou me referindo aos códigos de barra apresentados quando vendidas em lojas, e sim códigos que vão significar expressões culturalmente construídas e lidas como femininas e masculinas, numa perspectiva binária.
Questiono a seguinte forma: qual a lógica da roupa feminina e/ou masculina? Elas são agenciadas de acordo com as expressões de subjetividades, no entanto passa também por processos de negociações com o corpo, também (auto)afirmações identitárias de gênero.
Segundo Teresa de Lauretis, gênero é “produto de várias tecnologias sociais”, assim como “de discursos institucionalizados, epistemologias e práticas críticas, bem como práticas cotidianas” e vivenciar as categorias de gênero é vivenciar processos de subjetividade. Para a autora “a subjetividade é constituída de significado, hábitos, disposições, associações e percepções resultantes da interação semiótica do eu e do mundo exterior”. E daí, inicia-se um processo de interação do ser (sujeite) com o mundo, ao mesmo tempo em que vivenciamos os processos de alteridade, normas e normatividades.
Nesse cenário, de práticas e experiências normativas da performance, da roupa, do que se vê e do que se veste existe um trânsito, de acordo com o que pensa Simone Ávila, “que não ocorre fora de significados estabelecidos, mas tampouco está confinada a uma ordem fixa de significado”.
A gente precisa da roupa para dizer quem somos e tudo é dito sem palavras. A roupa apresenta um código em uma mensagem de gênero já estabelecida, uma vez que é lida e tida de acordo com o ensinado pelos códigos vigentes da cultura e da sociedade.
Mas qual é a marca desse código?
O código deixa nítido três leituras:
- do reconhecimento de signos ditos e lidos como femininos e masculinos;
- de corpos biológicos;
- dos processos de afirmação e autoafirmação de gênero.
Nessas leituras do código verifica-se o processo de comunicação social e cultural de gênero delineado, e consequentemente processos de aceitação e não-aceitação, pertencimento e não pertencimento.
Como bem pontua Umberto Eco, “é claro que a roupa serve principalmente para nos cobrirmos com ela. Mas basta fazer uma autoanálise honesta, mesmo breve, para verificarmos que, no nosso vestuário, o que serve realmente para cobrir (para proteger do calor ou do frio e para a ocultar a nudez que a opinião pública considera vergonhosa) não supera os cinquenta por cento do conjunto. […] O vestuário é comunicação”.
A roupa é como expressão do interior, daquilo que é subjetivo. Expressões de gênero passam a ser identificadas por meio das roupas e como afirmação identitária; algumas segundo as normas vigentes, outras desafiando as normas impostas e tudo isso se perfaz na performatividade.
Mas, seria isso a expressão identitária de gênero? Richard Bauman, em sua revisão do campo, nos apresenta aquilo que “opera sob a rubrica de performatividade”, e que deriva do trabalho do filósofo da linguagem inglês John Austin: um cenário linguístico produzindo significados. Em seguida, temos Judith Butler, conceituando gênero por meio da performatividade como “forma estilizada da afirmação e reafirmação de uma norma ou um conjunto de normas”. A norma pontuada pela autora está ligada aos construtos sociais e aos processos de construção de gênero, até porquê gênero não se constrói unicamente pela sociedade, mas também pelo sujeito. Segundo a observação da autora a identidade de gênero é uma estrutura de performance (o que se vê) e performatividade (o que se afirma), não esquecendo a relação com o corpo.
Dialogando com Joan Scott, Butler diz que “Embora os cientistas sociais se refiram ao gênero como um ‘fator’ ou ‘dimensão da análise’, ele também é aplicado a pessoas reais como uma ‘marca’ de diferença biológica, linguística e/ou cultural”. Me chama a atenção essa “marca linguística” que a autora traz como “práticas discursivas”. A norma criada se materializando no gênero mediante a prática discursiva.
No entanto, uma vez mais parafraseando Judith Butler, gênero e sexualidade se constituem de forma material e mediante atos performativos; aqueles que não são descritos pela linguagem, portanto são vividos pelos sujeitos mediante os discursos em um processo temporal, ritualístico e da natureza. Sendo que determinados corpos escapam da norma mudando o percurso do que era definido como fixo e imutável.
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Neste texto foram citadas as seguintes referências:
Ávila, Simone. 2014. Transmasculinidades: A emergência de novas identidades políticas e sociais. Rio de Janeiro: Plural.
Bauman, Richard. A poética do mercado público: gritos de vendedores no México e em Cuba. Antropologia em primeira mão, 103. Florianópolis: PPGAS/UFSC, 2008.
Butler, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. Nova York e Londres: Routledge, 1993.
Butler, Judith. 2000. “Corpos que pesam: Sobre os limites discursivos do Sexo”. Em: O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade, organizado por G. Lopes. Belo Horizonte: Autêntica.
_____. 2004. Undoing Gender. New York: Routledge.
_____. 2003. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Eco, Umberto. 1989. “O hábito fala pelo monge” em Psicologia do Vestir, por U. Eco et all. Lisboa: Assírio e Alvim.
Lauretis, Teresa de. 1987. Technologies of Gender: Essays on theory, film and fiction. Indianapolis: Indiana University Press.
Maluf, Sonia Weidner. 2001. “Corpo e corporalidade nas culturas contemporâneas: abordagens antropológicas”. Esboços 9(9): 87–101.
Scott, Joan Wallach. 1995. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade 20(2): 71–99.
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Kaio Lemos: Homem transativista dos direitos humanos, Consultor do Instituto de Raça, Igualdade e Direitos Humanos da ONU (AMÉRICA LATINA), Mestrando em Antropologia pela UFC UNILAB/CE, Especialista em Estudos de Gênero, Sexualidades e Direitos Humanos pela UFC/CE, Bacharel em Humanidades (UNILAB), Bacharel em Antropologia (UNILAB) e Presidente da ATRANSCE (Associação Transmasculina do Ceará).