Kaio Lemos: Suas roupas, nossas regras – o costurar da normatividade

Olá, tudo bom? Você já tirou o código da sua roupa? Ou melhor, você já reparou que sua roupa tem um código? Cuidado com os alarmes!

2030
Moda “gender free”. Foto: Reprodução da Internet
Por Kaio Lemos, colunista Mídia Queer

Gostaria de dialogar com vocês sobre roupas enquanto tecnologia de gênero. Enquanto capazes de criar gêneros por meio de discursos ou de práticas e experiências diárias. E como se dá essa criação de gêneros nas roupas? Bom, as roupas carregam códigos e não estou me referindo aos códigos de barra apresentados quando vendidas em lojas, e sim códigos que vão significar expressões culturalmente construídas e lidas como femininas e masculinas, numa perspectiva binária.

Questiono a seguinte forma: qual a lógica da roupa feminina e/ou masculina? Elas são agenciadas de acordo com as expressões de subjetividades, no entanto passa também por processos de negociações com o corpo, também (auto)afirmações identitárias de gênero.

Segundo Teresa de Lauretis, gênero é “produto de várias tecnologias sociais”, assim como “de discursos institucionalizados, epistemologias e práticas críticas, bem como práticas cotidianas” e vivenciar as categorias de gênero é vivenciar processos de subjetividade. Para a autora “a subjetividade é constituída de significado, hábitos, disposições, associações e percepções resultantes da interação semiótica do eu e do mundo exterior”. E daí, inicia-se um processo de interação do ser (sujeite) com o mundo, ao mesmo tempo em que vivenciamos os processos de alteridade, normas e normatividades.

Foto: Reprodução do filme Joana D’arc

Nesse cenário, de práticas e experiências normativas da performance, da roupa, do que se vê e do que se veste existe um trânsito, de acordo com o que pensa Simone Ávila, “que não ocorre fora de significados estabelecidos, mas tampouco está confinada a uma ordem fixa de significado”.

A gente precisa da roupa para dizer quem somos e tudo é dito sem palavras. A roupa apresenta um código em uma mensagem de gênero já estabelecida, uma vez que é lida e tida de acordo com o ensinado pelos códigos vigentes da cultura e da sociedade.

Mas qual é a marca desse código?

O código deixa nítido três leituras:

  1. do reconhecimento de signos ditos e lidos como femininos e masculinos;
  2. de corpos biológicos;
  3. dos processos de afirmação e autoafirmação de gênero.

Nessas leituras do código verifica-se o processo de comunicação social e cultural de gênero delineado, e consequentemente processos de aceitação e não-aceitação, pertencimento e não pertencimento.

Como bem pontua Umberto Eco, “é claro que a roupa serve principalmente para nos cobrirmos com ela. Mas basta fazer uma autoanálise honesta, mesmo breve, para verificarmos que, no nosso vestuário, o que serve realmente para cobrir (para proteger do calor ou do frio e para a ocultar a nudez que a opinião pública considera vergonhosa) não supera os cinquenta por cento do conjunto. […] O vestuário é comunicação”.

A roupa é como expressão do interior, daquilo que é subjetivo. Expressões de gênero passam a ser identificadas por meio das roupas e como afirmação identitária; algumas segundo as normas vigentes, outras desafiando as normas impostas e tudo isso se perfaz na performatividade.

Mas, seria isso a expressão identitária de gênero? Richard Bauman, em sua revisão do campo, nos apresenta aquilo que “opera sob a rubrica de performatividade”, e que deriva do trabalho do filósofo da linguagem inglês John Austin: um cenário linguístico produzindo significados. Em seguida, temos Judith Butler, conceituando gênero por meio da performatividade como “forma estilizada da afirmação e reafirmação de uma norma ou um conjunto de normas”. A norma pontuada pela autora está ligada aos construtos sociais e aos processos de construção de gênero, até porquê gênero não se constrói unicamente pela sociedade, mas também pelo sujeito. Segundo a observação da autora a identidade de gênero é uma estrutura de performance (o que se vê) e performatividade (o que se afirma), não esquecendo a relação com o corpo.

Foto: Reprodução do filme Joana D’arc

Dialogando com Joan Scott, Butler diz que “Embora os cientistas sociais se refiram ao gênero como um ‘fator’ ou ‘dimensão da análise’, ele também é aplicado a pessoas reais como uma ‘marca’ de diferença biológica, linguística e/ou cultural”. Me chama a atenção essa “marca linguística” que a autora traz como “práticas discursivas”. A norma criada se materializando no gênero mediante a prática discursiva.

No entanto, uma vez mais parafraseando Judith Butler, gênero e sexualidade se constituem de forma material e mediante atos performativos; aqueles que não são descritos pela linguagem, portanto são vividos pelos sujeitos mediante os discursos em um processo temporal, ritualístico e da natureza. Sendo que determinados corpos escapam da norma mudando o percurso do que era definido como fixo e imutável.

Neste texto foram citadas as seguintes referências:

Ávila, Simone. 2014. Transmasculinidades: A emergência de novas identidades políticas e sociais. Rio de Janeiro: Plural.

Bauman, Richard. A poética do mercado público: gritos de vendedores no México e em Cuba. Antropologia em primeira mão, 103. Florianópolis: PPGAS/UFSC, 2008.

Butler, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. Nova York e Londres: Routledge, 1993.

Butler, Judith. 2000. “Corpos que pesam: Sobre os limites discursivos do Sexo”. Em: O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade, organizado por G. Lopes. Belo Horizonte: Autêntica.

_____. 2004. Undoing Gender. New York: Routledge.

_____. 2003. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Eco, Umberto. 1989. “O hábito fala pelo monge” em Psicologia do Vestir, por U. Eco et all. Lisboa: Assírio e Alvim.

Lauretis, Teresa de. 1987. Technologies of Gender: Essays on theory, film and fiction. Indianapolis: Indiana University Press.

Maluf, Sonia Weidner. 2001. “Corpo e corporalidade nas culturas contemporâneas: abordagens antropológicas”. Esboços 9(9): 87–101.

Scott, Joan Wallach. 1995. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade 20(2): 71–99.

Kaio Lemos: Homem transativista dos direitos humanos, Consultor do Instituto de Raça, Igualdade e Direitos Humanos da ONU (AMÉRICA LATINA), Mestrando em Antropologia pela UFC UNILAB/CE, Especialista em Estudos de Gênero, Sexualidades e Direitos Humanos pela UFC/CE, Bacharel em Humanidades (UNILAB), Bacharel em Antropologia (UNILAB) e Presidente da ATRANSCE (Associação Transmasculina do Ceará).

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