Émerson Maranhão: Sobre barbárie e epifanias – uma crônica confessional

As aflições que tomaram os últimos dias, numa sucessão vertiginosa de notícias desesperadoras, são o mote para a coluna desta semana de Émerson Maranhão, que, inclusive, explica a razão de sua ausência recente

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Imagem: Reprodução/Mídia Ninja
Por Émerson Maranhão, colunista do Mídia Queer

Há três semanas tento, sem êxito, executar meu compromisso periódico com este espaço. A tristeza e o desencanto que se abateram qual praga sobre nós, nos últimos tempos, não me permitiam registros ou gracejos comportamentais e afins. Não que sequer tenha tentado. Assim o fiz, sistematicamente, mas os esboços que alcancei estavam tão prenhes de amargura e desgosto que melhor fim tiveram na lixeira virtual de meu desktop.

A cada vez em que perdi a queda de braço contra a folha em branco – maior temor de qualquer um que tenha a escrita por ofício – resignei-me na esperança de dias melhores que certamente viriam. E, com eles, presumi, retornariam a verve, o olhar inusitado sobre as miudezas da vida, a causticidade como contraponto à leitura do noticiário político desalentador.

Qual o quê?

A cada virada do calendário, abria-se ainda mais o abismo sob o chão que pisamos. O absurdo fez casa nestas plagas, não há dúvidas. E os dias melhores que, acreditei, não tardariam a bater à porta, por certo pegaram o beco e foram parar em outra freguesia.

Ruidosamente, a barbárie avançou. E segue avançado, exibida. Não que em algum tempo ela tenha sido afeita à discrição, mas encontrou tanta receptividade no Brasil deste 2020 que abandonou qualquer nesga de pudor. E a duras penas descobrimos que a civilidade que acreditávamos ser um dos pilares desta nação não passava de uma camada de verniz. Ora, escancaradamente enferrujada, ostensivamente corroída.

O rosário das desgraças que nos aflige é longo. O assassinado de três travestis no Ceará em apenas uma semana; a legitimação do racismo em uma sentença judicial; o surto da “classe média” que faz da humilhação ao outro uma prática recorrente de autoafirmação de suposta superioridade; os ataques à paternidade de um homem trans; o avanço dos fundamentalistas supostamente religiosos e sua sanha contra a laicidade do Estado; o aumento dos casos de homofobia e transfobia País afora; os dossiês antidemocráticos e persecutórios, para dizer o mínimo, circulando livremente (um deles até produzido pelo próprio governo); a normalização dos mais de 110 mil mortos pela Covid-19; a adesão oportunista de fracassados midiáticos ao discurso da extrema direita que se pretende eterna no poder; as ações sistemáticas de extermínio da educação e da cultura nacionais, a exemplo da taxação de livros e o desprezo pela Cinemateca Brasileira.

O tormento estava posto. Mas, qual náufragos em mar aberto, eu e os meus fomos nos valendo de qualquer epifania como possibilidade de tábua de salvação. A beleza indescritível da live dos Velloso; a emoção do reencontro presencial com o mar depois de meses de interdição: a resistência do cinema brasileiro, cuja potência pulsa em festivais online nestes dias de isolamento forçado; as conversas virtuais ou telefônicas aproximando amores e afetos separados por milhares de quilômetros; a fiel companhia dos livros.

Enfim, bálsamos possíveis para mitigar a crueldade destes tempos.

No entanto, anestésico nenhum é capaz de confortar depois do espetáculo de horror a que assistimos no começo desta semana. A tentativa de uso político, na mais vil acepção do termo, da tragédia que tomou conta da vida de uma menina de 10 anos de idade é atroz demais para que não nos indignemos ao grau máximo.

Estuprada dentro de casa, desde os seis anos de idade, a menina ficou grávida de seu agressor. Uma desdita, imaginava-se, capaz de comover o País e despertar empatia geral. Ledo engano. A justiça, por óbvio, autorizou o fim da gravidez fruto do estupro. Foi o bastante para que a turba se levantasse.

A fogueira torquemadesca que acenderam sob seus pés foi feita com a madeira dos que vazaram os dados da criança e do hospital para onde foi transferida; foi acesa com a tocha dos que a culparam pelo crime que sofreu; teve como corda aqueles que a condenaram nas redes sociais com as mais abjetas acusações; teve como base a estaca dos que se valeram do apelo popular da causa anti-aborto para ocupar espaço midiático já na intenção de angariar votos nas eleições municipais de logo mais.

Trocando em miúdos, onde qualquer pessoa dotada do mínimo de humanidade enxergou uma calamidade, uma desgraça imensurável, houve quem identificasse uma excelente oportunidade de ocupar espaço com discurso extremista em redes sociais, de fazer valer sua narrativa. E por humanidade aqui entenda-se a “qualidade de quem realiza plenamente a natureza humana”.

Sim, o cansaço e a tristeza são senhores destes dias tenebrosos. Mas já passou da hora de os substituirmos pela revolta e pela reação. É preciso agir, enquanto há tempo, para impedir que sejamos regidos por códigos inquisitoriais. É preciso que nos posicionemos claramente a respeito dos absurdos que nos cercam e ameaçam a civilidade que construímos à custa de muito esforço. É preciso que não permitamos que o horror que nos assedia, nos mais diferentes aspectos, seja normalizado. É preciso, mais que tudo, que arregacemos as mangas e que abramos a estrada para que os tão esperados dias melhores possam chegar.

ÉMERSON MARANHÃO: Jornalista, roteirista e diretor de cinema. Durante 15 anos, redigiu e editou a Cena G, coluna voltada para o público LGBTQ+ no Jornal O Povo. Estudou Narrativas Transmidiáticas na Universidade de Tallinn (Estônia). Em reconhecimento à sua militância, o jornalista foi homenageado no 6º For Rainbow em 2012.

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