Émerson Maranhão: Bloco do eu sozinho

Ressurgido do desterro a que foi relegado, o cantor de axé music Netinho alerta, em entrevista, sobre o grande perigo do Carnaval de Salvador: homem beijando na boca de outro homem. Outrora bissexual declarado, Netinho mira no “pessoal LGBT” mas acerta em seu próprio flanco. Ao apontar para a devassidão alheia revela muito da infelicidade em que sobrevive

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Foto: Reprodução/Facebook
Por Émerson Maranhão, colunista Mídia Queer

Na tarde da última quarta-feira, 29/7, foram divulgados trechos de uma entrevista que o cantor Netinho concedeu ao youtuber/filho do presidente/deputado federal Eduardo Bolsonaro, vulgo “Dudu Bananinha”. O teaser do programa, cuja íntegra vai ao ar no próximo sábado, 1º/8, causou alvoroço muito, ou seja, cumpriu a contento sua missão.

Nele, o ex-vocalista da banda Beijo, que fez muito sucesso na década de 1990, mas não vingou nos 2000, diz uma série de barbaridades, conteúdo sob medida para excitar o público da atração, que se arvora de “conservador” e “defensor da família tradicional”.

Os que têm 20 e poucos anos ou menos certamente nem desconfiam de quem se trata. Mas Netinho já teve, sim, seus dias de glória. No entanto, há muito está longe dos holofotes e as duas últimas ocasiões em que despertou alguma atenção midiática não foi por seu talento vocal nem habilidades coreográficas, digamos assim.

A primeira delas deu-se no longínquo ano de 2010, quando, em entrevista ao Fantástico, revelou já ter mantido relações sexuais com outros homens, para surpresa de ninguém com capacidade mínima de sinapse (e, coincidentemente, uma semana depois de Ricky Martin ter saído do armário). A outra foi quando declarou, em 2018, seu apoio à candidatura presidencial de Jair, o pai. A quem segue defendendo ardorosamente, aliás.

Falar o que Netinho falou na entrevista é dar banana a macaco. Em outras palavras, “jogar pra galera”, “levantar a bola para o outro cortar” – valhamo-nos dessas metáforas viris para não destoar do entrevistado. Por isso mesmo, são muitos os que argumentam que compartilhar ou comentar o tal teaser, ainda que expondo o seu ridículo de essência, seja jogar o jogo dos extremistas homofóbicos, a quem Netinho presta serviço e empresta, com prazer, o pouco de voz que lhe resta.

Ainda que concorde, em parte, com esta premissa, vejo em fragmentos do discurso de Netinho alguns pontos que não podem ser ignorados. Pelo contrário, merecem ser enxergados sob lente de aumento, como proponho fazer a partir de agora.

Comecemos pelo que há de mais relevante e revelador. Na entrevista, Netinho anuncia que desde 2016, quando teve “a cabeça modificada”, decidiu se abster de sexo. Antes, era um homem que “não podia ver um buraco de fechadura” que sentia tesão. Mas então, depois que “entendeu essa situação toda”, optou por parar de transar.

Sigamos no discurso do cantor, resistindo bravamente à tentação de comentá-lo de pronto. Netinho denuncia ainda que “o Carnaval de Salvador é Sodoma e Gomorra”, e que “as famílias que têm filhos adolescentes não querem mais levar para a Bahia, porque vai (sic) ver homem se beijando com homem”.

Por fim, lamenta que o “pessoal LGBT” vive de acordo com o “fiofó”, “pensam (sic) com o fiofó”, porque se assim não fosse, estaria hoje “comandando o Brasil junto com o Jair, ia ser maravilhoso! Mas eles foram doutrinados a enxergar a vida pela lente do fiofó”.

Chega a dar um cansaço ler tantas sandices de uma tirada só, mas sigamos. Salta aos olhos a fixação anal que este senhor tem – e cujo discurso não consegue esconder, pelo contrário, evidencia. Qualquer pessoa que tenha sido apresentada a rudimentos do pensamento de Freud percebe isso claramente. Ainda que cite a comunidade LGBT, é no “fiofó” que ele se fia.

“Fiofó”, em sua boca, é quase vírgula, ainda que sob o pretexto de delatar os que o usariam como “filtro mediador da realidade” (seja lá o que isso signifique). Há muitos anos afastado do comando de trios elétricos e blocos carnavalescos, não só por questões de saúde, mas principalmente pelo ostracismo a que foi relegado, Netinho vislumbra, na folia, inimigos morais por todos os lados.

Uma folia em que “adolescentes de família” correm o grade risco de ver “homem beijando homem” na rua. Isso, num país em que o casamento de pessoas do mesmo sexo está regulamentado há sete anos. Ou seja, homem pode, sim, casar legalmente com homem; mulher pode, sim, casar legalmente com mulher, mas daí a dar um beijo no Carnaval de Salvador é um pouco demais!

É risível essa lógica. Notadamente numa festa que é, por definição, a celebração do desejo carnal, da lascívia. E assim o é desde o princípio dos tempos. Por certo a memória de Netinho anda fraca e ele não recorde da hipersexualização das letras e coreografias da Axé Music nos anos 1990, quando ainda causava comoção ao subir no trio.

Ou, para ele há menos perigo em crianças descendo na boquinha da garrafa, segurando o tchan, abrindo a roda, e fazendo os passos da dança da sensual, como era comum nos Carnavais em que ainda fazia sucesso, que em adolescentes a flagrarem beijos na boca entre dois marmanjos em pleno 2020.

O fato é que o tempo passou e a situação mudou – para o bem, neste caso! Como mostra Daniela Mercury ao seguir rainha unânime da festa, mesmo depois de casar com uma mulher, Malu Verçosa, e se tornar uma ativista da causa LGBT. Sim, mulheres se casam com mulheres nesse País! Ou ainda, que os blocos voltados para o público LGBT (XYZ) sejam dos mais disputados (e caros) da folia. E só cresçam a cada ano que passa.

Quanto a abdicar de seu desejo sexual, nada mais conforme com o pensamento de quem ele serve. Não é de hoje que os extremistas homofóbicos e os fundamentalistas religiosos (com o perdão da redundância) pregam a “salvação” através da negação da pulsão sexual e consequente abstinência de sexo.

Chama atenção que o tal senhor entrevistado, famoso pelo apelido no diminutivo, outrora assumidamente bissexual, tenha também decidido parar de transar com mulheres. Será que a medida foi à guisa de antídoto para o desejo sexual por homens?

Não deixa de ser curioso que, à luz da psicanálise, o sexo (Eros) seja a pulsão da vida, reunindo os instintos de sobrevivência, prazer e reprodução. Por sua vez, se contrapõe naturalmente à pulsão da morte (Thanatos), que traz em si autodestruição, agressividade e violência. Então, não é de se estranhar que os que celebrem a morte tenham verdadeiro horror ao sexo. Neste caso, é desnecessário apontar quem está de qual lado.

CAMPANHA

Foto: Divulgação

Linda a campanha da Natura para o Dia dos Pais estrelada pelo ator Thammy Miranda. E o espernear dos Bolsonaro e seus asseclas fundamentalistas só escancara o quanto ela é necessária. A estes, deixo um recado pinçado de uma letra escrita por Renato Russo (gay proudtobe, por sinal) e lançada há 31 anos: “Não é a vida como está e sim as como são”.

Como inteligência é artigo cada vez mais raro entre as fileiras extremistas, traduzo os versos do poeta. Não adiantam os muxoxos, o esbravejar colérico e as ameaças de boicote a cada sinalização de tolerância e inclusão de grandes marcas empresariais. A diversidade sexual e de gênero não é um sinal dos tempos, é da natureza. Sinal destes tempos, sim, é o respeito às diferenças. E dele não vamos abrir mão.

Não à toa, nesta quarta-feira, 29, as ações da Natura subiram 6,73% e encerraram o dia na liderança do Ibovespa. Esta foi a resposta do mercado financeiro aos ataques de ódio comandados por Malafaias e afins contra a campanha. É para louvar de pé!

DELÍCIAS DO NORDESTE

A incansável Lena Oxa lança nesta quinta-feira, 30/7, o “Sabor do Nordeste” um canal no YouTube para ensinar a preparar receitas da gastronomia nordestina. O menu trará alguns dos pratos que ela executa no restaurante de comida regional Casinha do Acarajé, que comanda no Antonio Bezerra. A casa aceita pedidos para delivery, através do número (85) 98774-7497. A primeira receita é Xinxim de Bofe. Tá, meu bem?! Clique AQUI para acessar o vídeo.

FIQUE DE OLHO

Foto: Divulgação

Ainda estão disponíveis na Livraria Lamarca (Av. da Universidade, 2475, Benfica) alguns exemplares do livro “O primeiro parágrafo das memórias de um louco”. O preço é R$ 30. Lançada neste mês, a publicação independente reúne contos e crônicas de Thiago Noronha, um cara danadíssimo e que não para quieto. Este é seu livro de estreia e vale a pena não só conferir esse trabalho, como ficar atento a seus próximos passos.

ANTES QUE EU ESQUEÇA

Nesta sexta-feira, 31 de julho, é comemorado o Dia Mundial do Orgasmo. A data começou a ser celebrada há 21 anos, na Inglaterra. De lá para cá, ganhou o mundo. E você, já tem planos para festejar, à altura, este Dia, em pleno isolamento social provocado pela pandemia?

ÉMERSON MARANHÃO: Jornalista, roteirista e diretor de cinema. Durante 15 anos, redigiu e editou a Cena G, coluna voltada para o público LGBTQ+ no Jornal O Povo. Estudou Narrativas Transmidiáticas na Universidade de Tallinn (Estônia). Em reconhecimento à sua militância, o jornalista foi homenageado no 6º For Rainbow em 2012.

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