Dediane Souza: Aberto à visitação

Um debate sobre como as travestis são colocadas como algo exótico, enigmático e estranho

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Foto: Arquivo Pessoal

Nessa minha escrita, quero conversar com vocês sobre algumas situações que envolvem o cotidiano das travestis e transexuais, como também sobre irmandade, solidariedade e preconceito.

Convido vocês a conhecerem o cotidiano de uma travesti, aqui vou situar quem sou eu: Dediane Souza, nascida em Santana do Acaraú (CE), no dia 07 de julho de 1988, “23 aninhos”, canceriana com ascendente em câncer, travesti, negra, jornalista, gestora, nordestina, sertaneja, ativista, puta, dona de casa, solteira, mãe de gata e irmã de várias outras travestis e transexuais e de mulheres cis negras, heterossexuais, lésbicas, bissexuais, brancas, doutoras, analfabetas, donas de casa, casadas, solteiras e putas…

Hoje, moro apenas na companhia de uma gata que chamo de Mandela (uma homenagem ao Nelson Mandela); sempre morei com irmãos e irmãs (CIS) de vida e de luta que o universo me deu.

Nesse período de pandemia, aproximei-me de toda a vizinhança que compartilha comigo o mesmo andar: “juntamos panelas”, dividimos refeições, permitimo-nos a conhecermos um ao outro e perceber o quanto estávamos tão próximos, tanto no sentido literal quanto poético da palavra, e não sabíamos; estigmas e pré-conceitos foram superados e, hoje, temos uma relação de irmandade.

Muitas das vezes, nas conversas cotidianas com as manas que dividiam a casa comigo, vida e sonhos, surgia sempre uma pergunta do mundo externo: Como é morar com uma travesti? (qualquer travesti não, comigo, Dediane Souza).

Essa pergunta sempre foi frequente entre umas  e outras taças de vinho ou várias cervejas no domingo. Eu sempre disse: Miga, diga que aqui em casa está aberto a visitação, estou cobrando R$ 50,00 para cada 20 minutos.

Vocês devem está se perguntando: “Dediane, tanta coisa para conversa nesse espaço e você traz esse conversa?”

Trago essa conversa para refletirmos juntos sobre como as travestis são colocadas como algo exótico, enigmático e estranho.

Então, eu pergunto: Como pode, você, MULHER, morar com uma travesti? Relate a sua experiência. Parece até uma pergunta do ENEM, visto que a resposta é complexa!

Muitas pessoas CIS nunca se depararam com uma pessoa trans ou uma travesti no seu cotidiano, nunca dirigiram sequer uma palavra, muito menos de se colocarem no lugar dela.

A quem tem curiosidades, minha casa sempre será um lugar de liberdade, um espaço de troca de afeto, de uma boa conversa, de provar uma boa comida caseira, papear, ver as bixas pretas fazendo arte, conversar sobre historias de superação e de questionar a hipocrisia da nossa sociedade.

Minha casa e meu corpo vão estar sempre abertos para o encontro de novas experiências com pessoas que, minimamente, permitam-se afetar-se com as inúmeras possibilidades de ser e existir nesse mundo, mas sempre com um olhar de igualdade.

Se alguém não se permitir a sair da sua bolha ou zona de conforto, outros mundos não serão descobertos, outras histórias não serão contadas e nem ouvidas. É preciso deixar-se afetar em todos os sentidos.

Nessa perspectiva, quero lembrar de uma relação de irmandade e queridismo que foi vivida com toda a intensidade, equilíbrio e respeito que toda relação memorável deve ter. Soraya de Oliveira Santiago foi um exemplo de pura afetação: quando falávamos sobre a vida, sobre o tempo, sobre a celebração das conquistas, acerca dos planos para o futuro… tudo isso era constante e presente nas nossas conversas e vivências.

Prometo a vocês falar um pouco mais, nos próximos textos sobre o cotidiano das travestis que, dentro da cadeia social, são as últimas a serem colocadas como humanas. Terá muito close, fechação, lacração e afetação.

Dediane Souza: Jornalista, travesti, feminista, diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Ceará, ativista das pautas de direitos humanos e filiada à Rede Trans Brasil. Atualmente é Coordenadora da Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual da Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social – SDHDS de Fortaleza.

1 COMENTÁRIO

  1. Que palavras cheias de amor, cuidado e respeito. Muito orgulho de você meu amor, admiração e companheirismo sempre esteve presente em nossa relação, muito afeto por vc.

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