Acabou o aqué! E agora? Pandemia expõe fragilidade econômica LGBTI+

Dentro do capitalismo, sem dinheiro não se come e não se vive. Em meio à pandemia, profissionais autônomos e independentes contam como estão driblando a crise para garantir as necessidades básicas

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Ilustração: Adaptada do Freepik
Por Gustavo Freitas e Ian Andrade

Quase uma semana antes do Governo do Estado do Ceará decretar o isolamento social em decorrência da pandemia de Covid-19, em março deste ano, todos os compromissos de Dan Vieira, o artista por trás da drag queen Rayanna Rayovack, foram cancelados, inclusive o curso de passarela que lecionava.

“Eu senti o impacto da pandemia logo que se foi falado sobre a possibilidade de entrarmos em isolamento”, revela Dan, que passou a integrar a cruel estatística levantada por pesquisa do Coletivo #VoteLGBT+, que aponta que cerca de 45% da pessoas LGBTI+ brasileiras tiveram suas atividades econômicas totalmente paradas durante a quarentena.

Com a participação de pouco mais de 10 mil LGBTIs, o mapeamento destacou que “para estas pessoas, a perda de renda foi imediata e impacta diretamente na sua capacidade de sobrevivência e bem-estar”.

A falta de dinheiro/trabalho, inclusive, é descrita, por 18% destas pessoas, como o maior problema causado para elas pelo contexto de pandemia.

O estudo nacional expõe o que era uma preocupação de entidades de defesa dos Direitos Humanos, como a Organização das Nações Unidas (ONU), que solicitou aos países a adoção de medidas de proteção à população LGBTI+, reconhecendo este grupo como um dos mais vulneráveis a problemas de saúde, desemprego e falta de moradia.

Apesar de atuar em várias frentes, Dan Vieira – que já teve entre as alunas a Miss Brasil 2014 Melissa Gurgel – estava totalmente na informalidade. Assim como outros trabalhadores de gênero e sexualidades diversas, ele atuava no setor cultural e de serviços, recebendo por trabalhado realizado, ou seja, sem os benefícios trabalhistas e as respectivas garantias colocadas para os trabalhadores formais, como salário fixo e seguro desemprego, por exemplo.

A drag queen Rayanna Rayovack. Foto: Fernando Cysneiros, para o projeto The Drag Series.

Sem qualquer atividade remunerada, o artista contou com a ajuda voluntária de amigos. “Eu recebi ajuda de três pessoas próximas. Uma delas foi uma amiga trans de São Paulo, que entrou em contato comigo para saber se eu estava precisando de alguma coisa. Expliquei pra ela como estava e ela mandou um dinheiro”, revela o profissional que, com quase 10 anos carreira, enfrenta o maior desafio da sua vida laboral.

Fragilidade extrema

A pesquisa da #VoteLGBT+ traz outros dados, que mostram a fragilidade extrema dos grupos dissidentes da cis-heteronormatividade.

  • A taxa de desemprego padronizada entre os LGBT+ é de 21,6% – quase o dobro da população em geral, que, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é 12,6%;
  • Inclusive, três em cada 10 dos desempregados estão nesta situação há um ano ou mais;Uma em cada cinco pessoas LGBTI+ não possui nenhuma fonte de renda individual hoje;
  • Uma em cada quatro revela ter pedido o emprego em razão da Covid-19;Quatro em cada 10 pessoas (40%) das pessoas LGBTI+ e metade das pessoas trans (53,35%) não conseguem sobreviver sem renda por mais de um mês caso percam sua fonte de renda financeira.
  • O relatório do estudo explica que essas marcas são produto do Ciclo de Exclusão, que previamente impacta a vida de LGBTIs e é intensificado em situações adversas como a que vivemos. Obviamente, “o impacto da crise financeira é muito maior entre quem já era mais excluído do mercado de trabalho”, aponta o documento.

Dificuldade de acessar benefícios na pandemia

Ilustração: Adaptada do Freepik.

Como destacou o Mídia Queer em reportagem publicada em junho, pessoas trans e travestis são ainda mais vulneráveis neste período de isolamento social. Segundo dados divulgados pelo Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), 90% das travestis e transexuais sustentam-se através do trabalho sexual e, por isso, a quarentena tem afetado o grupo enormemente.

Além disso, muitas LGBTIs estão em situação de vulnerabilidade, sem documentos pessoais, como o CPF, conta corrente ou mesmo celular e acesso à Internet. Por esse motivo, políticas de transferências de renda criadas pelo Governo Federal e Congresso, como o Auxílio Emergencial de R$ 600, não as alcança plenamente.

Outra política que poderia auxiliar o grupo, neste caso especificamente os que atuam no setor cultural, é o I Edital Festival Cultura Dendicasa: Arte de Casa Para o Mundo, da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. No entanto, a medida vem sofrendo críticas, por não priorizar os recortes sociais mais fragilizados.

Dan Vieira explica que, nas duas semanas em que contou com essa ajuda de amigos, tomou conhecimento do referido Edital, que concede financiamento governamental para os trabalhos selecionados. “O meu material teve um problema com o comprovante de endereço. Entrei com recurso, mas mesmo assim não fui aceito”, descreve Dan, que viu sua primeira oportunidade de renda durante o isolamento fracassar.

“Fiquei decepcionado com isso. Tendo em vista que estávamos resolvendo coisas online, estaríamos vulneráveis a problemas com a tecnologia”, pontua ele, que estava a espera de certa tolerância para problemas decorrentes das dificuldades com o cadastro virtual. “Eu cumpri todos os requisitos. Só fui reprovado pelo comprovante de endereço que não foi ‘upado’ no e-mail por um pequeno ‘bug’”, explica.

Dan Vieira revela que essa desorganização dos governos foi uma das questões que mais o marcou negativamente durante este período de isolamento. Ele avalia ainda que o edital do Governo do Estado do Ceará não priorizou o recorte econômico. “Alguns profissionais fizeram até campanha para que artistas com mais condições [financeiras] abrissem mão desse edital”, diz.

Mas ele não desistiu. Usou o material que foi preparado para o festival e fez uma campanha nas redes sociais. Passou assim a oferecer a montagem artística em link privado no YouTube para quem fizesse uma “doação consciente”, tal como estivesse comprando um ingresso.

Take da montagem “A casa da Diva”, uma adaptação do monólogo teatral de Dan Vieira para as plataformas digitais. Projeto concorreria ao edital do Governo Estado. Foto: Reprodução.

Não há preço afixado, vai das possibilidades de cada um. “Eu consegui com essa campanha pagar as contas de março, abril, maio e junho”, revela o artista, que ficou feliz com o retorno financeiro e pelas trocas de mensagens com cada uma das pessoas que tiveram interesse em sua produção.

Solidariedade de organizações e grupos da sociedade civil

Card de divulgação da Vaquinha LGBT.

Dan Vieira foi ajudado ainda no início da pandemia por uma rede de artistas teatrais que se juntaram para apoiar com cestas básicas outros profissionais que estivessem em situação mais vulnerável e foi contemplado também com alimentos e ítens de higiene pessoal oriundos da Vaquinha LGBT, um movimento organizado pela ONG CENAPOP – Cultura e Eco-cidadania.

“Mas eu só aceitava essas cestas quando estava realmente precisando. Quando não, encaminhava para outra pessoa”, confessa ele, que também foi contemplado por um auxílio único da Prefeitura de Fortaleza de R$ 200 voltado para artistas.

Pequenos negócios LGBTI+ foram duramente afetados

Os estabelecimentos estão gradativamente voltando as atividades em Fortaleza, mas, nestes mais de 100 dias de quarentena e restrição de circulação, muitas casas, cujas atividades são voltadas para o público LGBTI+, também sofreram de forma quase mortal os impactos da pandemia.

Brisa Damasceno, profissional autônoma, que sobrevive há cinco anos de um trabalho itinerante que ela nomeou de “BadaBrisa” é umas empreendedoras que viu seu “ganha pão” destruído. “Eu trabalhava com drinks em várias ocasiões, com a pandemia e o auxílio [emergencial] negado, eu passei a oferecer os drinks por delivery e não tive sucesso. Minha sorte foram algumas doações de cesta básica e o trabalho da minha esposa que segurou as pontas”, explica.

Brisa em atividade, no início de seu projeto itinerante BadaBrisa. Foto: Lucas Santos.

Brisa conta que, mesmo com a crise, não houve muita flexibilidade nas cobranças de aluguel, por exemplo. Para ajudar a companheira nas receitas domésticas, ela tem contado com a ajuda de amigos próximos na promoção de rifas. “O dono da casa onde moro de aluguel não aceitou baixar o valor, mas estendeu o prazo de pagamento sem cobrar multas. Alguns amigos artistas me doaram seus trabalhos artesanais para que eu pudesse promover uma rifa”, explica.

“Em paralelo ao bar, também trabalho com arte. Sou atriz, palhaça e batuqueira, mas sabemos como é o retorno financeiro da classe artística nesse país, não é mesmo? Por isso, há cerca de um mês iniciei um curso de cabeleireira para tentar voltar a trabalhar”, descreve a autônoma.

Brisa Damasceno. Foto: Arquivo Pessoal.

Brisa também enfrentou dificuldades com o sistema do Auxílio Emergencial do Governo Federal. Ela fala que os motivos apontados para a negação do auxílio não condizem com a realidade. “Desde que eu solicitei o auxílio, me foi informado que um membro da minha família já o recebeu, mas isso não é verdade. Tentei reformular meu cadastro observando todas as informações enviadas com o cuidado de não cometer erros e mesmo assim continuou a mesma resposta. Até hoje não recebi nenhuma parcela e nem tenho notícia desse ‘familiar’ informado. Já nem tenho mais o ‘app’ instalado porque já desisti”, denuncia ela, totalmente inconformada com a falta de canais para que o cidadão possa corrigir situações desta natureza.

Casos como o de Brisa são comuns. Só a Defensoria Pública da União (DPU) já abriu mais de 43 mil processos de assistência jurídica pela para atender quem teve negado o pedido de auxílio.

Mesmo quando há o trabalho, não se encerra o problema

Representação do ciclo de exclusão. Ilustração: Adaptada do Freepik

A #VoteLGBT+ apontou que outro relato frequente entre os entrevistados foi o sentimento de alívio de alguns que adotaram o home office (trabalho virtual) por não precisarem mais frequentar o ambiente de trabalho.

O sentimento positivo está relacionado à pausa no convívio com colegas e até culturas de empresas LGBTfóbicas que se transformam em locais hostis e inseguros no dia a dia.

Como destacou outro estudo, este realizado em toda a América Latina por organizações regionais, com o apoio do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), 74% das pessoas LGBTI+ deste território sofreram pelo menos uma vez, nos últimos 12 meses, algum tipo de violência simbólica, violência institucional, violência sexual, assédio ou violência física no trabalho.

Não contribuir em casa também gera conflito

Ainda conforme o diagnóstico “LGBT+ na Pandemia”, as pessoas que moram com a família e não contribuem com as finanças da casa têm 30% mais chances de indicar problemas de convivência familiar, como a maior dificuldade da quarentena quando comparadas com quem contribui, ilustrando como os três maiores impactos da pandemia – “piora na saúde mental”, “violência e solidão” e “falta de fonte de renda” – estão todos relacionados.

“A preocupação financeira impacta na saúde emocional e muitas vezes na já precária convivência familiar e social, que por sua vez volta a fragilizar ainda as questões emocionais”, conclui o relatório.

Faltam perspectivas

Sem outros recursos, populações vulneráveis deveriam contar com um retorno mais firme do Estado, mas, infelizmente, os impactos da doença, que já matou cerca de 60 mil no país e está jogando milhões na miséria, tende a piorar.

Em meio à crise mundial, o Brasil precisou lidar com a morosidade, o negacionismo científico, a instabilidade politica do Governo central e o uso indiscriminado de desinformação por parte do presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores, o que vem acentuando ainda mais os problemas decorrentes da Covid-19.

Como avaliou o presidente do Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB), Francisco Pedrosa, o presidente “denota a completa incapacidade de gerir, de coordenar os esforços de combate à pandemia no campo sanitário, no campo econômico, e ainda mais levanta uma intolerância descabida e que não faz o menor sentido em relação à população LGBTI+”, destaca.

Edição: Rafael Mesquita

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