De “o Léo” para “a Léo”: no doutorado, ela se transformou

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Pesquisadora na área de processamento de imagens e aprendizado de máquina revela que, depois de concluir a graduação em Ciências de Computação no ICMC, descobriu sua verdadeira identidade.

Por Denise Casatti

Ela é uma doutoranda que busca ensinar máquinas a reconhecerem e criarem imagens. Ou talvez ela seja, na verdade, uma artista tentando tornar as máquinas mais humanas. Independente da definição, foi um desafio de pesquisa na área de processamento de imagens e inteligência artificial que a fez sair de São Carlos, cidade no interior de São Paulo, para estudar um ano na Universidade de Surrey, localizada em Guildford, no Sudeste da Inglaterra.

Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), a doutoranda chegou ao país em julho de 2019 e poderia ter retornado ao Brasil no início de 2020, quando começou a pandemia do novo coronavírus. Mas ela decidiu continuar no exterior e finalizar o projeto de pesquisa em andamento.

No próximo mês, Léo Ribeiro volta à terra natal para continuar desenvolvendo seus estudos no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, espaço que a acolhe desde 2013, ano em que se tornou aluna do curso de Ciências de Computação. Porém, ela sabe que não reencontrará o mesmo ICMC que deixou para trás: tudo se transformou ao longo desse último ano.

Léo também sabe que as mudanças, apesar dos receios que sempre as acompanham, podem trazer novas oportunidades, tal como aconteceu no início de 2018, quando ela se deparou com a imagem da própria face alterada por um aplicativo: “Eu fiquei encantada com aquela pessoa que era eu com a aparência de mulher. Passei as semanas seguintes inserindo no aplicativo todas as fotos que eu tinha e ficava tentando achar qual imagem me tornava mais bonita. Era maravilhoso e até infantil”.

Quase seis meses depois, outro acontecimento se somou à experiência de ver aquela imagem feminina na tela do celular: Leo assistiu a uma entrevista da artista Rebecca Sugar, a primeira mulher a ter um desenho animado próprio no Cartoon Network, o Steven Universe. Na entrevista, Rebecca se declarou como uma mulher não binária. “Fui pesquisar o significado daquilo e disse a minha namorada que achava que eu era um homem não binário, porque realmente não me identificava com o universo masculino e, talvez, fosse um pouco mulher também”, conta.

A namorada não deu muita importância para a revelação. Mas, daquele momento em diante, Léo trocou todos seus avatares nos videogames, transformando-os em mulheres: “Foi impactante, principalmente naqueles jogos em que você veste a personagem e escolhe o estilo. Na minha cabeça, eu comecei a achar que, talvez, pudesse ser aquela personagem de alguma forma”.

Para compreender o que estava acontecendo, a estudante resolveu utilizar as habilidades de pesquisadora e estudar mais sobre identidade de gênero. “Começou a fermentar dentro de mim a ideia de que era isso que estava faltando: ser uma mulher para me tornar mais eu.”

Travessia 

O processo de mudança de gênero costuma não ser fácil em sociedades como a nossa, que ergueram um muro invisível separando as pessoas classificadas como do gênero masculino e as designadas como do gênero feminino. É como se, entre esses dois polos extremos, não existissem meios termos. Quem ousa tentar desconstruir esse muro ou atravessá-lo de um lado para o outro corre riscos.

Para Léo, o primeiro passo da travessia era conversar com a namorada, Laís Chiachio de Miranda, que se formou em Ciências de Computação no ICMC junto com Leo. O relacionamento, que começou em 2015, vivia uma fase conturbada em outubro de 2018. Apesar do medo, Leo se abriu com Laís: “Ela disse que estaríamos juntas enquanto pudéssemos estar juntas. E Laís se tornou meu porto seguro porque, dali em diante, eu tinha com quem compartilhar tudo”.

Foi Laís quem acompanhou Leo na compra do primeiro sutiã e os vestidos de Laís se transformaram nos primeiros que Leo experimentou. E as duas passaram a se maquiar juntas. “Eu comecei a ir ao ICMC maquiada, mas de uma forma que ninguém percebesse”. No meio de novembro, Leo contou a novidade para os pais, que moram em Bebedouro, também no interior de São Paulo. Eles responderam que amavam Léo e continuariam a amá-la.

Em janeiro de 2019, tal como é tradição no início de cada novo ano, o professor Moacir Ponti, do ICMC, reuniu seus orientandos – de iniciação científica, mestrado e doutorado – em um almoço. Um pequeno e aconchegante restaurante próximo à Praça da XV, em São Carlos, foi o palco da confraternização. No entanto, para surpresa de todos, Moacir fez um pedido incomum antes que o almoço fosse servido: pediu que os alunos revelassem um plano pessoal que tinham naquele ano, o qual não se relacionasse com o ambiente acadêmico ou profissional.

Moacir pediu que a rodada de depoimentos começasse por Léo, que estava com o coração batendo mais rápido e as mãos suando. Enfrentando o nervosismo, tomou coragem para a revelação: “Este ano, meu plano é fazer uma transição porque sou uma mulher trans”. Todos ficaram em choque na mesa, mas imediatamente depois acolheram bem a notícia. Desde então, a comunidade do ICMC, predominantemente masculina, passou a contar com mais uma mulher, “a Léo”.

“Minha experiência é muito privilegiada e sei que não sou um bom parâmetro de comparação. Porque, em geral, as pessoas trans não são bem tratadas. Vale ressaltar que, tanto no Brasil quanto na Inglaterra, convivo em centros de pesquisa que, em geral, tem pessoas de várias nacionalidades e respeitam a diversidade”, reconhece a Léo. Ela se lembra de um evento que aconteceu no ano passado na Universidade de Surrey, em que se fez um minuto de silêncio pelas mortes de pessoas transgênero e destacaram que o Brasil era o país que mais matava mulheres trans.

Mudanças 

O quarto em que a Léo está agora, enquanto conta sua história pela tela do computador, é o mesmo em que esteve em 2016. Naquele tempo, passou quatro meses realizando estudos para a iniciação científica junto com o mesmo grupo de pesquisa com o qual trabalha no doutorado.

Parece tudo igual, exceto a Léo. Em 2016, tinha os cabelos curtos e sempre usava calça jeans e camisa polo com cores neutras. Agora, os cabelos levemente cacheados já tocam os ombros. O pescoço está enfeitado de dourado por uma gargantilha e uma fina corrente, onde se pendura um pingente vermelho em formato de coração, o qual ela toca com os dedos vez ou outra. Os lábios têm batom e as finais alças que cobrem o ombro, de cor salmão, estão respingadas por pequenas estampas vermelhas. Os gestos são delicados e o sorriso abre-se espontâneo frequentemente.

Durante toda a vida, a Léo tentou encontrar a própria identidade: “Quando eu era pequena, minha família mudava bastante de cidade porque meu pai trabalhava em banco. E eu amava: sonhava com o dia que meu pai chegaria dizendo que íamos mudar. Já a minha irmã chorava porque ia perder todos os amigos. Para mim, cada vez que a gente mudava era uma nova chance de tentar ser alguém que combinava comigo”.

Quando chegou ao ICMC em 2013, para cursar Ciências de Computação, a Léo imaginou que encontraria um lugar como outro qualquer, em que era vista como diferente de todos, de certa forma até discriminada por ser esquisita e a mais inteligente da sala. “Mas foi uma mudança muito mais drástica do que todas as anteriores. Porque o ICMC é um lugar que aceita as pessoas muito bem, que aceita as estranhezas de todo mundo. No ICMC, ser estranho, ser diferente é muito bom, porque todos são estranhos”.

Então, no novo ambiente, aquele incômodo e desencontro sentidos pela Léo diminuíram um pouco. No entanto, apesar de sempre parecer muito feliz, ela ainda tinha muita dificuldade em expor as próprias emoções. E só passou a ser mais transparente em relação a seus sentimentos quando revelou à namorada que se transformaria em mulher.

“Eu sempre tive muito orgulho do meu nome. Então, quando eu transacionei, eu só encurtei meu nome. Não via necessidade de mudar completamente, apesar de sentir certa pressão social para isso. Quando mando e-mails, por exemplo, as pessoas acham que sou um homem. Então, passei a usar o pronome “a” antes de Léo para deixar bem claro que sou uma mulher”.

Durante esse um ano na Inglaterra, a Léo teve a experiência de ser reconhecida pelo seu nome social, já que, diferentemente do Brasil, os ingleses não exigem que sejam usados os nomes tal como registrados nos documentos: “Aqui, minha conta do banco, meu cartão de crédito, as cartas que recebo, enfim, tudo tem meu nome social. Então, quando voltar ao Brasil, quero mudar meus documentos”. Será mais uma mudança na trajetória dessa garota já tão acostumada ao constante movimento da vida, em permanente transformação.

 

 

 

Denise Casatti é assessora de Comunicação do ICMC-USP

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